Divã-neando

Um dia para não ser

Escrito por Rose Carreiro

Não queria sentir, ver, nem ouvir. Não queria ir a lugar nenhum. Hoje, seria um bom dia para não ser.

Vontade de não existir, só por hoje. Pensava nisso enquanto via as luzes fracas correndo pelo caminho que fazia com rapidez, mas sem pressa de chegar em casa. Não queria chegar a lugar algum. Não queria enxergar, não queria ouvir. Suplicaria por uma anestesia para a consciência. 

Não parecia possuir vida… uma vida. Era como respirar numa bolha. Como flutuar num vão entre o passado e o futuro. Se podia chamar isso de presente, ele era de mau gosto. A brisa no rosto, roçando o pescoço, arrepiando os pelos do braço, era só o que trazia alguma sensação de realidade.

Tudo parecia ter perdido o sabor, e os cheiros eram agora todos fracos. Não reconhecia mais o aroma doce vindo da manga rosa, nem o cítrico que o capim-limão exalava quando partido. A chuva poderia encharcar a terra, mas o ar ainda continuaria sufocante e seco. As cores não eram mais vivas. O que via ao redor remetia a fotos antigas, manchadas por dedos curiosos e apagadas pelo tempo. Não havia nitidez diante de seus olhos úmidos de melancolia. 

Era como uma morte. Era isso. Era como não viver. Qualquer sentimento hoje era pesado demais. Qualquer ação exigia muito esforço. Inspirar só aumentava o peso no coração, que já bombeava o sangue sem vontade. Expirar carregaria o resto de suas forças para fora de si. Apenas ser já faria doer as articulações – e a alma, se acreditasse agora que ainda havia uma.

O nó na garganta só sabia sufocar e aumentar até desmanchar num descer lento e inesgotável de lágrimas. Se desfazia em tristeza como as pedras de gelo derretendo no fundo do copo sujo, aguando o resto de uma bebida barata. Não havia ganas de se sustentar mais. No fim do dia, o desejo era que o mundo parasse. Que todos os sons dessem lugar ao silêncio. Que todas as conexões se desligassem. Uma bateria no fim. O pavio consumido pelo resto da chama, e enfim, um breu.

A única vontade era de que tudo fosse inerte, vazio. Um sonho de inexistência. E, só por hoje, tudo seria só ausência.

Sobre o autor

Rose Carreiro

Nascida num 20 de Outubro dos anos 80. Naturalmente petropolitana, com passaporte carioca. Flamenguista pé frio e expert em não se aprofundar em regras esportivas. Fã de Verissimo – o Luis Fernando – e Nelson, o Rodrigues (apesar de tudo). Poser. Pole dancer com as melhores técnicas para ganhar hematomas. Amadora no ofício de cozinhar e fazer encenações cômicas baratas. Profissional na arte de cair nos bueiros da Lei de Murphy.

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