Licença Poética

A menina da janela

Escrito por Gabi Coiradas

Confesso, com certo embaraço, que faço trilha sonora para ela de vez em quando. Ligo o som do computador num volume só para meus ouvidos e encaixando as notas das músicas em cada virada de cabeça que ela dá, a cada respirada profunda olhando a Araucária.

De minha janela, vejo o ponto luminoso da janela da menina.

Todos os dias, às duas da manhã, o ponto se consome em meio à fumaça expelida de forma despretensiosa, quase desleixada, como se pudesse refletir sobre as verdades do mundo e encobrir as que não gostasse.

A menina não sabe que posso vê-la cá de minha janela, no prédio em frente, o que deixa a minha observação ainda melhor, eu gosto de observar a solidão dela, o jeito que ela pega o cigarro, firme, quase que um beijo raivoso de escrava do vício.

cigarrette

Se pudesse, eu pagaria pelas suas aflições, pela tristeza dela. Compraria entrada inteira para ver o filme que ela vê todos os dias naquela janela para a rua vazia, que faz ela se emocionar a cada vez que ele termina, se é que termina. Mal sabe a menina (ainda que eu não saiba sua idade) que a cena que ela protagoniza é mais triste do que a sétima arte pode fazer, e ao mesmo tempo tão bonita que eu não resisto a esse voyeurismo egoísta, próximo do sádico, me julgo às vezes.

Confesso, com certo embaraço, que faço trilha sonora para ela de vez em quando. Ligo o som do computador num volume só para meus ouvidos e encaixando as notas das músicas em cada virada de cabeça que ela dá, a cada respirada profunda olhando a Araucária. Já me peguei desejando que ela não fosse feliz, para que o meu filme sempre tivesse sequência. Soa egoísta, e de fato o é. Mas me sinto ligado à menina triste da janela e ao mundo que ela condena com os olhos.

Nem mesmo sei a raiz da sua dor, na verdade não importa. Sei que as lágrimas caem e são enxugadas imediatamente, como se aquilo fosse errado. Se ela soubesse a beleza desse momento, talvez chorasse de novo.

Às duas e meia, a janela se fecha. A luz da menina é quase sempre apagada (possivelmente, a de seu interior também), vejo os contornos do show com a iluminação urbana profusa do centro. No dia que se segue, a menina da janela permanece anônima para mim, talvez até já a tenha visto andando pela avenida, quem sabe. Prefiro assim. A magia se mantém.

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Sobre o autor

Gabi Coiradas

Alguém que não sabe escrever bios otimistas, mas que acaba tentando só para não ser xingada.
Formada em Letras, sonha em ser lida, mas tem suas dúvidas se tem algo a dizer. Sua alma é San Diego.
Bellydancer sempre no básico e fotógrafa sem equipamento, é isso mesmo que dá pra imaginar: uma baita de uma salada cultural