Carlos era um carteiro diferente de qualquer outro. Desde muito jovem, sempre soube que seria um entregador de correspondências. Levava bilhetinhos do pai para a mãe, transportava os papeizinhos de amigo secreto todo fim de ano. Enfim, não foi nenhuma surpresa quando o menino ingressou nos Correios, tornando-se o funcionário mais jovem da história a trabalhar na corporação de papel.
Ele era simplesmente perfeito. Fazia amizade com todos os cachorros das residências — inclusive ensinando pequenos truques — , passava protetor solar durante suas caminhadas de entregas e sabia exatamente o horário que encontraria o destinatário das cartas.
Sempre entregava a correspondência em mãos. Sempre.
Gostava de olhar nos olhos e ver a reação das pessoas ao receber os envelopes.
Por sua habilidade e timing, se tornou rapidamente uma referência para os outros carteiros, idolatrado por todos aqueles que almejavam um dia ocupar o topo da pirâmide da comunicação postal.
Porém, um dia, quando estava em sua última entrega, algo inédito aconteceu. Chegando na frente do apartamento indicado, ninguém o atendeu. Carlos nunca havia se deparado com a ausência das pessoas e começou a questionar sua própria imagem de carteiro perfeito. Algo estava errado. Não seria hoje que ele falharia. Não ele, o baluarte das cartas.
Percebeu que dentro do apartamento alguém ouvia música. Olhou pelo buraco da fechadura e se deparou com uma mulher deitada no sofá, escrevendo no celular.
Carlos odiava celular. Odiava mensagens de texto. Odiava a comunicação digital e a forma com que a fluidez desse método havia tirado a vontade das pessoas de escrever de próprio punho. Inclusive, fazia parte de um grupo de apoio aos funcionários demitidos das fábricas de lápis e canetas.
A pessoa do outro lado era Clara. Uma mulher que nunca havia escrito nenhuma carta em toda a sua vida — inclusive evitava contatos analógicos para se comunicar — e tinha predileção por toda e qualquer facilidade.
Logo, ostentava uma curiosa aversão aos métodos não digitais de troca de mensagens.
Carlos havia criado bolhas nas mãos de tanto apertar a campainha e também desenvolveu uma fissura nos dedos nas tentativas de bater na porta. Todos os esforços para chamar a atenção de Clara falharam mais que os rojões de festa junina comprados no Paraguai.
Ele então deixou-se escorregar pela porta até se sentar no chão. Encarou o envelope, prestes a tomar a decisão mais difícil de toda a sua história no setor de correspondência: abrir ou não a carta?
Já que não poderia entregar em mãos, precisava descobrir o conteúdo do envelope. Aquilo não fazia muito sentido, mas era algo que ele escolheu acreditar numa tentativa de minimizar o fracasso da entrega.
O remetente mostrava apenas duas letras: “E.D.” Provavelmente as iniciais de alguém com preguiça de se identificar por completo. Isso não diminuiu a coragem de Carlos, que rasgou o envelope do lado e tirou uma folha de caderno escrita numa letra difícil de entender.
Era o ex-namorado de Clara, dizendo que ela só conheceria o amor de sua vida quando pudesse parar e ler algo que não tivesse sido digitado. Precisava entrar em contato com palavras escritas em papel, com o sentimento que não se descreve num teclado. Pra marcar, precisa de tinta.
Ele nem percebeu, mas quando terminou de ler, sentiu gotas caírem em seu ombro. Era Clara, que havia aberto a porta e lido junto com ele.
Ela então lhe deu um beijo no rosto, agradeceu por ter quebrado a barreira da repulsa pela escrita e entrou no apartamento.
Era a solução para um dia incomum. Carlos entendeu que nem sempre precisava ser tão metódico e firme em suas próprias convicções. Afinal, na primeira vez que precisou transgredir o que acreditava, transformou a vida de alguém. Principalmente a dele próprio.
Talvez por isso ele esteja escrevendo uma carta gigante para entregar num certo endereço com música alta.