Em um país marcado pela exclusão social, é difícil não notar as ausências de quem não pode fruir plenamente dos direitos culturais.
Tenho pensado muito sobre nosso desejo de ocupar espaços, de ter acesso e fruir do ócio criativo.
Como alienígena, observo que grande parte dos rostos que encontro pelo caminho não é o meu, não são os meus. Onde eles estão? Fazendo o quê? Servindo alguém em algum lugar.
O que estou fazendo aqui? Por onde andei que nunca estive aqui antes? Quanto tempo desperdiçado! Também quero saber por que me faço essas perguntas. O tempo não nos pertence.
Penso no tipo de lazer que cabe a quem trabalha duro e fico triste com o repertório disponível, reflete certa objetificação, a fuga no álcool dentre outras. Muitas vezes a recusa aos estudos, ao trabalho precarizado. Isso também é resistência. A educação formal segue com sua língua estrangeira e o navio negreiro teima em persistir. Os aparelhos culturais não estão nas periferias e zonas rurais por algum motivo. Alguém tem que carregar o piano e cuidar de nossas crianças enquanto festejamos.
Desde os gregos, a democracia pressupõe a exclusão.
Quando é possível escolher (se houvesse escolha), muitos de nós prefere a recusa. Quantas vezes não pensamos que é melhor passar necessidade a se submeter a condições degradantes?
Quantas vezes a aparente inércia não é justamente a melhor estratégia para sobreviver? Quem sabe rir do próprio infortúnio leva vantagem. Dança, canta, ginga, dribla.
O movimento subterrâneo que nunca cessa e é invisível está sempre aí, basta olhar ao redor, na feira, na rua, nos canteiros de obras, nas cozinhas, atrás do balcão, no campo. Cantarolando, inventando e subvertendo a lógica do popular como exótico suvenir.
Às vezes, o povo sobe no palco e se veste de purpurina, pois estrela é para brilhar. A gente inventa que de brecha em brecha vai fazer ruir todas essas estruturas. Queremos mais. Queremos o que também é nosso. Esse lugar também me pertence.
Que luxo é ter tempo livre para fruir da cultura e do lazer! Gozar ainda parece coisa proibida, tabu de classe.
A paleta de cores e a condição social de quem frequenta os eventos culturais mais elaborados não é colorida, é tão opaca que cega. Nos tornamos incapazes de ver o invisível, o invisibilizado. Temos medo de espelhos.
As ocupações dos frequentadores desses eventos também não destoam muito, são professores, funcionários públicos, equipes de produção, profissionais liberais, empreendedores, artistas etc., tentando ganhar o pão e se maravilhar, apostando no encontro, o melhor da vida que ainda vale a pena. Por essas terras, quem é muito rico só tem dinheiro.
O melhor sempre escapa à programação oficial e nunca se petrifica em uma foto cheia de sorrisos e filtros. Há vida nos bastidores, nos becos e vielas.
Até me pergunto se os eventos existem apenas para registrarmos nossa ilustre figura, como se servissem à criação de uma ficção de nós mesmos, para nos manter acordados ou embalar o nosso sono que já dura mais de quinhentos anos. Temos urgência de nos sentirmos vivos.
Se houver muitos e elaborados registros a gente pode até esquecer de quem não aparece nas fotos, de quem não está na plateia, de quem não está no palco. O pouco é melhor que nada. A gente se engane e sofra menos. Estamos fazendo a nossa parte. Eles que se esforcem.
Do lado de cá do balcão vejo muitos rostos cansados, muito sacrifício para manter alguma sanidade para continuar o trabalho. Quem tira a foto, quem grava a notícia também agoniza enquanto colore nosso mundo com o que de bom restou, sempre fica um pouco. É como um fogo que nos atravessa e vai passando de mão em mão. A gente insiste em viver.
É muito lindo ver tantas pessoas juntas contando suas histórias e dividindo a potência da criação. É mágica essa babel de sotaques e vivências. Dá trabalho e custa caro. Custa as vidas de quem fica pelo caminho e que poderia estar aqui, tomando aquela cerveja, rindo e aplaudindo conosco.
A vida segue e a gente adia os lutos e faz de conta que não estamos tão tristes. O show tem que continuar, é assim que fingimos honrar suas memórias.
As pessoas estão famintas e não querem só comida.
Da minha parte sobra um certo estranhamento, alegria por finalmente ter acesso ao pouco que me cabe nesse latifúndio, e a solidão por não ver meus companheiros ao meu lado.
No retorno, dividimos as novidades, como quem acende um farol. Amanhã serão eles que nos contarão como foi o dia, a festa, o retorno do trabalho, a viagem sonhada. A gente sempre sonha com uma festa, com uma viagem e em ter pessoas para nos aguardar na volta.
Como disse outro dia uma amiga, estou me sonhando.
Gratidão a todas as pessoas que criam, produzem, disseminam e fazem acontecer a cultura nesse país.
Na próxima espero te ver aqui, me ver aqui. Evoé!