Deveria estar dormindo o sono de quem trabalhou, estudou modelagem, dobrou uma pilha de roupas lavadas e ainda sentiu o pesar de ver seu par de anabelas destruído – seja pelo azar ou pelo excesso de uso, a tristeza da perda é a mesma. Mas, enquanto digito estas linhas e o relógio se aproxima das duas da manhã, o vento atravessa as frestas que não consigo fechar e sacode as janelas. O apartamento se enche de um som que soa como agonia para mim e assombro para a gata.
Deveria ter chamado alguém pra consertar essas trancas faz tempo. Sempre esqueço. Nas janelas e em mim, deixo as frestas continuarem. As minhas são um pouco mais complicadas de se fechar, talvez porque estejam cobertas de um emaranhado do que sou, tentando me achar e ser, para mim, genuína. O problema de não conseguir trancar tais aberturas é que, em noites como essa, a vida vem com seus dedos pontudos, cutucando meu coração por entre as costelas.
Tento lacrar minhas frestas com o excesso de trabalho, a falta de tempo, o prazer do que me anima, os sonhos que me preenchem. Ensaio abafar o som que corta o ambiente e a cabeça, sem sucesso, tanto nas janelas quanto dentro de mim. Deixo vazar quem sou e a necessidade que tenho de me expressar, e as frestas também funcionam como uma saída, por onde sopro o ar da minha vida e do que sinto. E ele pode atingir alguém, ou pode ficar no vácuo de um silêncio que diz muito.
Escorro palavras pelos dedos, a chuva escorre pelos vidros. O barulho continua batendo contra a janela, e contra as paredes do meu peito. Vedar o que penso já foi comprovadamente meu maior erro, calar só me anulou. Então, eu falo. Pra me sentir vivendo, e sendo eu, original. Ainda que seja contra o som melancólico da natureza incontrolável e ensurdecedora. Ainda que, do lado de fora das minhas frestas, não haja uma mão firme querendo segurar o que me esvai. Uma guerra entre o ruído que não me deixa dormir dentro do quarto e o som que me mantém acordada dentro da cabeça.
Zunimos, eu com as minhas frestas, as janelas com as suas, mais uma madrugada adentro. As tempestades passam, os emaranhados se desmancham. Atravessá-los é só questão de resistência, de saber aceitar. De esperar pelo tempo que amansa. Deixo as frestas seguirem abertas, e o ruído tende a cessar. No fim, talvez elas existam apenas por eu não ser boa de isolamento – seja ele acústico ou existencial.