Com os pés salgados

Aquela noite não foi diferente de tantas outras. O gatinho ronronava a seus pés. O galão de água, de vez em quando, dava sinais de vida emitindo um barulho de sorvedouro. A luz do dia já anunciava a manhã que chegava como todas as outras, silenciosa. Os passarinhos não se intimidavam com o avanço monótono das horas, alvissareiros começavam o dia a pensar em voz alta, piando. Ela só ouviu os sons lá de fora quando já era tarde demais e o dia já havia se instalado.

Como se começa a vida de novo, ou melhor, como recomeçar a viver depois de estar gasta de esperanças? Ela sabia que precisava esvaziar o lado do guarda-roupa que já não possuía um dono. Guardaria algumas das peças restantes como lembrança, enviaria para algum parente ou levaria todas para uma instituição de caridade? O vigia da rua poderia ficar com alguns casacos. No sofá, enrolada em uma manta, ela não tinha forças para se mover. O cheiro ainda estaria no armário, como testemunha, como um indício volátil daquela ausência. O que ela costumava fazer aos domingos? Não se lembrava. Procurou na memória, em tempos há muito perdidos. A vida anterior que levara como alguém independente se esvaíra, e ela, não conseguia encontrar a si mesma nos escombros do passado.

Os rapazes recolheram todos os objetos que os faziam lembrar, até os retratos foram guardados. Na parede restara uma mancha, como uma moldura para o que deveria ser esquecido, mas insistia em permanecer. O vazio na parede gritava. A lembrança poderia ser consoladora decorrido algum tempo, porém, naquele momento ela ainda machucava muito.

Foi fazer o café e não soube se deveria colocar três ou apenas duas colheres de pó. Colocou o líquido quente na garrafa, mas não bebeu. Parecia um sacrilégio, uma traição, o fato de ela mesma ter que coar o café da manhã. Essa função era dele.

O Sol já clareava tudo. A grama no quintal recebia uma luz dourada como se estivesse inaugurando algo. Eram assim todas as manhãs? Ela gostava de se levantar um pouco mais tarde, compensava esse desperdício de vida aproveitando parte da noite para fazer as tarefas que não conseguia executar durante o dia. Ainda assim, a noite anterior e muitas outras antes, encontraram-lhe sem energia. Para que colocar flores no vaso? Para que arrumar a cama? Não havia toalha molhada sob o colchão para que ela se zangasse e ralhasse com a perfeita razão feminina. Era possível viver sem ter com quem dar broncas? Precisava ir ao banco, assinar uns documentos no cartório, mas não se animava.

Muitas pessoas lidam com situações semelhantes, no entanto, ela não sabia como agir. Tinha emagrecido. Colocou o vestido azul, esquecido há muito tempo no armário. Disfarçou o cheiro de guardado com um perfume. Evitou usar a sua colônia preferida, quis ser outra. Penteou os cabelos. Prendia-os ou deixava-os soltos como gostava de fazer antes de surgirem aqueles fios brancos?

Retirou a aliança e colocou um brinco bem pequeno na orelha. Resolveu que passaria no comércio para comprar uma nova bolsa, escolheria uma pequena, pois assim, poderia levar somente o essencial. Escolheu uma grande, vermelha. Custou um pouco caro, mas tudo bem.

Na volta para casa tomou outro trajeto. Caminhou pela praia com os sapatos nas mãos, deixara as compras no carro. Olhou o mar infinito, agitado, furioso, indo e vindo. Aos poucos, a tormenta ia se acalmando, a noite tomava conta de tudo. Sentiu fome. Não teve medo. Pensou que há mais de dezoito anos não experimentava essa sensação de ser virgem. Caminhou até o carro. Não zangou consigo por ter enchido o tapete de areia. Gostou de transgredir. Decidiu que ficaria com os pés sujos por um pouco mais de tempo, talvez dormisse assim, com sal nos pés.

No quarto, o gatinho pulou na cama e ela adormeceu.