Existe uma área no estudo das línguas que se chama semântica. É a área que estuda a relação entre o signo e o significado, ou, em outras palavras, estuda por que as pessoas falam uma coisa quando querem dizer outra. E não, não tem a ver com mentira, hipocrisia ou falsidade, mas com dar novos sentidos a palavras e expressões que, se interpretadas literalmente, significarão algo completamente diferente.
Vamos a um exemplo do dia a dia. Nós dois estamos em casa, tem uma panela de feijão no fogo, acabou de se completar o tempo necessário para o cozimento. Como eu estou ocupado, peço para você: “vai lá e desliga o feijão pra mim, por favor”. Você, evidentemente, se encaminha até o fogão, abre a panela, pega o feijão, encontra onde está o botão de ligar e desligar e o desliga, certo? Claro que não. Todo mundo sabe que, quando a gente diz “desliga o feijão”, estamos querendo dizer “rode o botão do fogão na direção horária para interromper o fornecimento de gás para o queimador sobre o qual a panela cheia de feijão está apoiada, de forma que a chama seja interrompida”. Ou seja, nós atribuímos ao signo “desliga o feijão” esse significado todo que eu acabei de dizer aí.
Essa explicação um tanto acadêmica será seguida de, adivinhem, uma reclamação. Esse texto está sendo escrito para reclamar que há um grupo de pessoas hoje que precisa urgentemente aprender que existe a semântica. Que decidiu polemizar expressões inofensivas (ou seja, que não envolvem racismo, machismo, homofobia ou outros comportamentos deploráveis, porque essas a gente tem que problematizar mesmo) só porque, ora vejam só, as estão interpretando ao pé da letra. Todos os dias nas redes sociais eu vejo gente pedindo para pararmos de usar tal expressão, dando como justificativa sua interpretação literal, e não a que a foi atribuída por anos de linguagem.
Vou usar como exemplo uma galera que estava reclamando do termo “minha esposa”, dizendo que a mulher não é propriedade do marido. De fato não é, mas, embora “minha” seja um pronome possessivo, nessa expressão ele não tem significado de posse, e sim de relação ou referência. É como quando alguém diz “meu ônibus vai passar daqui a pouco”, ninguém vai imaginar que aquela pessoa comprou um ônibus, o pronome é usado apenas para especificar o ônibus, diferenciá-lo dos demais através da relação que ele possui com o falante. “Ah, mas um ônibus é uma coisa, a esposa é uma pessoa”. Ok, então como ficam expressões como “meu pai” e “meu filho”? Se uma pessoa diz “ele é meu pai, eu sou filho dele”, quem é propriedade de quem?
Na vida em sociedade, é super comum usarmos palavras e expressões em sentido conotativo, ou seja, diferente do literal, seja para facilitar a comunicação ou dar ênfase. Desde que todos os envolvidos na conversa saibam o significado, não há problema. Quando alguém diz “esse homem é um gato”, evidentemente não está querendo dizer que ele mia, come Whiskas ou toma banho se lambendo, pois o significado já está estabelecido na língua, então, não tem o menor cabimento problematizar argumentando “ele é um ser humano, e não um felino”.
Ademais, problematizar questões que não têm problema algum acaba tirando o foco daquelas que realmente têm de ser problematizadas, aquelas que ofendem ou desrespeitam, e, quando vêm à tona, surge logo alguém para reclamar do tal “politicamente correto”. É o menino gritando lobo num megafone 24 horas por dia, e depois reclamando que ninguém veio quando o lobo realmente estava lá.