Pensamentos crônicos

Buracos

Escrito por Letícia Nascimento

Buracos são buracos, das brechas literais aos rombos figurados, e sempre machucam. Caia em um para ter certeza.

Buracos são buracos em qualquer lugar do mundo. Existe, no entanto, uma infindável variedade de buracos. Buracos são denotativos, no meio da terra, do asfalto e, repletos de água, poças se fazem. Buracos são fantasiosos, no meio do corpo, dentro do coração, no fundo da alma. Buracos têm diversas particularidades. Buracos sempre machucam.

Caia em um para ter certeza.

Dentro da menina que acordava às dez da manhã para observar os pássaros na grama da casa de infância, enquanto bolava planos para o futuro em papel colorido, havia um buraco. Um buraco pequenino, flexível, pronto para ser alargado.

Ela não sabia o que a esperava. Sonhava com a vida adulta e a concretização de seus sonhos mais intensos e complexos. Com aquele momento no qual todos os risquinhos que estava traçando iriam se unir formando a mulher de sucesso que estava destinada a ser. Era feliz. E mantinha o buraquinho pequeno, invisível para quem estava fora de si.

Cresceu, escolheu rotas, percorreu caminhos e se viu no epicentro de todos os seus projetos. Em sua perspectiva faltava muito pouco, era metade do caminho andado e ela mal precisou correr. Tropeçara em poucos buracos até então, não tinha ralado os joelhos jamais.

Caiu. Precisou cair em um para ter certeza.

Hoje, ela sente a cicatriz do enorme buraco que teve que costurar. Não era no coração, porque as coisas do coração são fechadas. O coração tem arquivos com pastas, muitas pastas e cadeados. Você só precisa saber trancar e abrir. É muito mais fácil lidar com o coração.

Seu buraco cresceu na expectativa. Essa mesma, que fica solta dentro do corpo e atinge como um balão cheio de fogo. Ela teve a maior parte do que desejara nas manhãs ao som dos passarinhos. Mas lidou com um buraco no meio do caminho. 

Por sorte, todos os buracos podem ser fechados. Com terra, concreto, paciência, pessoas queridas, o tempo irremediável, a descoberta de limites, música, um bom vinho, amor… Ela descobriu que seja qual for o tamanho do buraco, há sempre algo no fundo que vai ajudá-la a se levantar e cobri-lo. 

E assim, cheia de remendos, lidou com todas as crateras que o futuro lhe reservou. 

Sobre o autor

Letícia Nascimento

Jornalista por formação, redatora por rotina, roteirista de alma, deseja um dia ter a audácia de se intitular escritora. Ama bebês, cachorros e fofuras em geral. Cinéfila que assiste de tudo, viciada em séries e leitora apaixonada. Possui todos os distúrbios possíveis do sono, luta contra a ansiedade crônica e a fibromialgia com humor e acidez. Parece jovem mas joga gamão nas horas vagas.

4 comentários

  • Essa crônica de categoria cada dia me surpreende. Hoje Letícia nascimento vem com todos os buracos e crateras visíveis a quem quiser ver. Amei…

    Ps: eu também quero escrever crônicas. Bjusss.

  • Só você pra falar de buracos com tamanha beleza. Ultimamente, mais do que buracos, eu tenho tido emaranhados dentro de mim. Só que é tudo tão embolado, que nem escrever sobre isso eu tow conseguindo hahahah

    Adorei, Letícia <3

Comente! É grátis!