Texto enviado pelo leitor Marcelo Evangelista Silva
Estávamos felizes por saber que iríamos começar no novo colégio. Era um colégio grande, imponente, longe do bairro, próximo ao centro da cidade. Podíamos voltar para casa a pé, economizar o dinheiro do transporte e tomar uma casquinha na volta. Era de uma plenitude danada saber que dali a uma semana tudo seria novo, uma grandiosidade de esmero.
No colégio anterior – um daqueles colégios públicos de bairro totalmente sucateados por falta de recursos – havia desavenças, mas no remate todos eram aliados. Ele era um aluno muito extrovertido, amigo das meninas e dos meninos. Gostava de apresentar trabalhos orais e ler suas respostas aos exercícios de casa. Na reunião de pais, os professores diziam à sua mãe: “É um excelente aluno, só que conversa que é uma beleza”.
Pouco importava o novo colégio em si, sua estrutura. Ele estava realmente interessado no que lá aprenderia. Ou melhor, ele estava interessado onde poderia chegar com as coisas que lá aprendesse. Tinha descoberto, através dos professores do colégio antigo, que lá ele poderia aprender tanta coisa boa… que um dia poderia ser o primeiro da família a entrar numa universidade pública – coisa que ele tinha tomado conhecimento há pouco tempo que não se precisava pagar.
O primeiro dia de aula se aproximava. Planejava tudo em seu “novo” caderno, comprado por sua mãe em setembro na queima de estoque de uma dessas grandes lojas de departamento no seu horário de almoço. Esse ano, seu pai lhe dera uma mochila nova. O cheiro de frescor e novidade do tecido sintético, onde traria conhecimento para casa, casava bem com a experiência que queria ser vivida.
O dia chegou. Não conseguiu tomar café. Pegou o transporte público com mãos e pernas tremendo, junto aos lábios secos de tanta ansiedade. Quando chegou na sala, percebeu que alguns alunos já se conheciam do ano anterior – eles usavam roupas de algodão puro e portavam uma quantidade absurda de materiais escolares brilhantes que ele sabia bem o preço.
Durante toda a semana, os professores iam se apresentando e mostrando o que seria aprendido a partir da semana seguinte. Ele, com canetas de cores diferentes para tópicos e texto, anotava tudo muito atento da segunda fila, porquanto a primeira já era ocupada por alguns alunos que tinham demarcado o território alguns anos antes, segundo boato de um também novo aluno.
Na outra semana, chegamos cedo, antes da aula. Ele foi para a sua sala, eu para a minha. Achou muito difícil o conteúdo da aula de biologia, se esforçaria ao máximo para aprender e tentaria aproveitar melhor o tempo que não estaria trabalhando com seu pai. Mas, na segunda aula, conseguiu responder à professora de história uma pergunta sobre política do café com leite. Os alunos da fila à frente torceram o bico, um deles disse:
– Que voz de bicha!
Outro completou:
– Esse viado deve ter vindo de algum muquifo. Olha essa calça desbotada e esse tênis que passa por gerações.
Boa parte da sala riu.
A professora rapidamente repreendeu o ato e seguiu o que tinha programado.
Ele sabia que estava aprendendo muito e que não poderia deixar se abater por aquilo. Era, até então, a maior oportunidade da sua vida. Decidiu que passaria o intervalo dentro da sala, junto com as meninas. Era até melhor para comer o pãozinho com margarina que trouxe de casa sem ser julgado. Ao comer, foi ameaçado por alguns meninos por “ser assim”, mas seguiu comendo seco.
Ao fim da aula, após a professora sair sala, foi levado ao banheiro – com muita resistência – pelos meninos da primeira fila. Levou uma surra. Não sabia ao certo o motivo. Se lavou rapidamente e correu para não perder o ônibus.
Chegando em casa, sua mãe percebeu o calombo na testa e o lábio inferior roxo. Imaginando ter sido um acidente na aula de educação física, a mulher negra, cansada do árduo trabalho, perguntou:
– O que foi isso? Como foi a aula?
Ele com olhar de batalha respondeu:
– Nada. A aula foi ótima.
Felicidade danada de ver meu texto sendo publicado aqui.
Espero que deperte reflexões semelhantes às que sinto sempre que leio um texto daqui.
Saudações!
Marcelo, a gente é que fica feliz de receber um texto como esse <3 Fique à vontade para compartilhar seus escritos sempre que quiser, a casa é sua! Um abraço!