Abençoado por Deus. Assim esse pedaço de chão chamado Brasil é definido pelo inoxidável Jorge Ben Jor. Acho forçado, confesso, mas acho bonito. Noves fora meu ateísmo de ocasião, a referência parece caber direitinho.
Dia desses, me peguei pensando sobre uma consideração que eu cansava de ouvir na minha infância, quando repetiam à exaustão que o Brasil era privilegiado e não tínhamos por aqui uma série de fenômenos destrutivos da natureza tão comuns a tantos países. Terremotos, nevascas, tufões, furacões, nadinha! Antes que o sorriso de canto de boca se desenhasse com uma nostalgia boba, tropecei na realidade, colidindo – tal qual um cometa – de cara com outro exercício imaginativo frio.
Chegada uma inédita temporada de furacões em Banânia, quais seriam os desdobramentos? Como venceríamos tal desafio imposto pela mãe natureza? Não sabem? Vou adiantar por aqui, nesse humilde espaço, em primeiríssima mão.
Imagens dos satélites seriam disponibilizadas ao governo e veículos de imprensa. Solidária, a comunidade científica internacional se disponibilizaria a nos ajudar e a ONU sinalizaria com uma missão humanitária de contenção de danos pós-catástrofe. A imprensa mobilizaria todo o seu aparato para prover todas as informações possíveis e úteis à população. Ainda teríamos mais algumas semanas pela frente, seria possível vencer o desafio e diminuir a tragédia.
Mediante a enxurrada de informações, cobranças e pedidos de explicações, o Presidente da República diria – diretamente do chiqueirinho separado para atender sua claque – que caso esse “suposto furacão” chegasse, não seria tão destrutivo quanto a mídia dizia.
O impacto inicial geraria correria na população, o medo de uma crise de desabastecimento seria grande e as pessoas se preocupariam apenas com seus estoques, esquecendo que talvez fosse interessante pensar na família dos outros.
Alertas sobre um possível aumento na classificação do furacão seriam emitidos pelas mais respeitadas organizações científicas sobre o assunto. O espaço na mídia seria amplo para informar e educar o povo diante de um desafio tão incomum e destrutivo. Governadores e prefeitos bateriam cabeça, enquanto seus asseclas mapeariam uma oportunidade única de saque aos cofres públicos. Tapumes superfaturados, sacos milionários de areia, barreiras de contenção a peso de ouro se multiplicariam em contratos sem licitação.
Pressionado a dar novas explicações sobre o assunto, o presidente ouviria seus filhos e consultaria seu astrólogo. Diante disso, outorgaria seu direito a um pronunciamento em rede nacional: chegada a hora de falar ao povo de modo oficial. Olhos atentos à TV, ouvidos colados no rádio de Norte a Sul do Brasil. Naquela noite, o presidente diria aos duzentos e tantos milhões de brasileiros que o dito furacão não passaria de uma ventania e que, caso atingisse o Brasil, traria danos apenas aos mais frágeis, que não pudessem correr.
Convenientemente, os dias e problemas seriam esquecidos pelo Governo Federal. O ministro da Economia seguiria risonho e diria que apenas com muita besteira as coisas dariam errado, o país estava em pleno voo. Enquanto isso, a torcida organizada do presidente diria nas ruas e nas redes que aquilo tudo não passava de uma invenção estrangeira e que o furacão chinês era uma invenção conspiratória e que não havia o temer; o mito falava a verdade.
Gastando muito e mal, prefeitos e governadores agiriam de maneira descoordenada, desordenada e pouco eficazes. Medidas de proteção e comportamento seriam difundidas por imprensa e autoridades municipais. O executivo nacional acusaria a imprensa de politização do furacão.
Mais uma vez instado sobre a crise, o presidente assumiria pela primeira vez que o furacão atingiria o continente, mas diria que morreria quem tivesse que morrer e que esse era o final de todos. Paciência.
Atingidos pelo furacão, desabaríamos como país e descobriríamos tudo aquilo que temos de pior. Daquilo que somos aos políticos que inventamos. Da suposta preocupação com o amanhã à mesquinharia do egoísmo. O pior de nossas almas e vísceras seriam expostos, assim tudo faria algum sentido.
Realmente, para que a gente siga existindo como país, apenas o excesso de sorte pode ser a razão disso. É provável mesmo que a tal “bênção de Deus” cantada por Jorge seja o que ainda permite que o Brasil exista. Ao final do raciocínio já não existia mais sorriso, sobrava o lamento e alguma gratidão.