A vida de uma mulher é, em boa parte do tempo, delineada pela aprovação externa. Não meramente pela aclamação de outras pessoas, mas precisamente pela validação masculina.
Passamos a vida tentando provar para os homens que somos tão boas quanto eles. Que somos tão competentes, inteligentes, capazes, fortes, independentes, hábeis e corajosas quanto eles.
O que pouca gente admite é o quanto essa necessidade de afirmação desgraça a nossa cabeça, molda nossos comportamentos e detona a nossa autoestima. Sem contar o buraco de carência emocional e sensação de insuficiência em que a busca por essa aprovação frequentemente nos joga.
Uma vez que compreendemos isso, podemos, finalmente, nos libertar e viver mais genuinamente, nos desprendendo dessas amarras de tentar ser o que não somos, fazer o que não queremos e dizer o que não pensamos, apenas para obter a aquiescência de nossos pais, maridos, namorados, irmãos, chefes, colegas de trabalho, amigos, vizinhos, etc.
Podemos, finalmente, vivenciar a nossa feminilidade, com toda a complexidade que ela impõe, e compreender que não precisamos provar nada a ninguém – muito menos a algum homem.
Eu sei, a essa altura você já está pensando que este é um texto de uma feminista chata. E pode até ser que seja. Mas, tenha um pouquinho mais de paciência e venha comigo.
Apenas como um exercício imaginativo, dia desses me peguei pensando: “e se eu agisse como um homem?”. Então, comecei a vislumbrar mentalmente todas as ocasiões em que eu poderia ter tomado atitudes distintas se eu fosse do gênero oposto.
Apenas a título de tornar mais interessante, vamos imaginar que, em vez de mulher, eu tivesse nascido homem branco cisgênero heterossexual de classe média. O auge dos privilégios. Me peguei devaneando sobre como seria pertencer a este espécime que sempre foi o dominante, o soberano.
Eu, homem hétero branco, não precisaria, por exemplo, ter medo de sair sozinho na rua, a qualquer hora do dia ou da noite. Eu jamais entraria em pânico ao ouvir passos atrás de mim, e não teria a sensação do coração vir à boca a cada vez que um homem estranho sentasse ao meu lado numa longa viagem de ônibus.
Eu provavelmente usufruiria do meu direito adquirido e conquistado de sair para correr sem camisa, sem a menor sombra de medo de ser assediado na rua. Aliás, se alguma mulher me paquerasse, eu me sentiria lisonjeado. Homem gosta disso, né? Imagina que bênção poder receber olhares lascivos e piscadelas de desejo sabendo que não passariam disso, que meu corpo não correria o risco de ser violado, que minha integridade física continuaria intacta. Um sonho.
Também me imaginei indo jogar aquela pelada com os amigos. Me vangloriando de, do alto dos meus 34 anos, ser um bem-sucedido solteirão que não deve satisfação a ninguém. Até imagino os olhares de admiração, os tapinhas nas costas e os comentários de que eu, sim, sou feliz. Um verdadeiro garanhão em sua melhor idade, e livre! Baita cara de sorte.
Eu também não precisaria me explicar pra ninguém se não quisesse ter filhos. E, acaso os tivesse, bastaria ser um pai de Instagram e pagar uma pensão merreca, e absolutamente ninguém me questionaria.
Outra hipótese que me ocorreu foi a de que, em tantos momentos em que fui mal interpretada por me posicionar com firmeza, se eu fosse homem, teria sido muito admirado. Homão da porra, que não tem medo de ninguém. E com o plus de, em último caso, eu saber que poderia usar minha força física pra me defender, se fosse necessário. É a lei da selva, meu amigo, o mais fraco que se submeta ao mais forte.
Lembrei, também, de todos os momentos em que eu desesperadamente arrumei e limpei a casa para receber qualquer visita que fosse, porque “imagina que horror a casa de uma mulher ser suja/bagunçada”. Ah, se eu fosse homem, ninguém repararia nisso. E, se reparasse, no máximo, o julgamento seria “esse aí precisa de uma mulher… risos”. O privilégio de não precisar me preocupar tanto com os serviços domésticos certamente me renderia algumas horas extras por dia para me dedicar a outras atividades – como a minha carreira, ou mesmo o lazer.
Um outro ponto em que eu certamente não me esforçaria tanto seria no trabalho. Afinal, se eu fosse homem, a exigência para comigo não seria tão alta. Eu poderia apenas fazer o mínimo, e além disso poderia silenciar minhas colegas mulheres, tomar o crédito pelo trabalho delas, sobrecarregá-las sem o menor constrangimento e ainda obter altíssima avaliação de mérito pela minha chefia e ser promovido no lugar delas. Sem o menor peso na consciência. O mundo me dá essa garantia. É assim que o sistema funciona, parça.
Entre esses tantos desvarios, devo ter passado horas imaginando tudo que eu poderia fazer se fosse homem. Se precisasse me importar menos – ou quase nada – com o que os outros pensam de mim. Se eu apenas pudesse ser insensível e ostentar uma reputação de macho. Se me fosse normalizado me relacionar sexualmente com quem (e quantas) eu quisesse sem que isso manchasse a minha imagem. Se não tivesse que carregar o fardo de estar sob milimétrico escrutínio durante todos os momentos da minha vida e sempre fadado a perseguir um padrão inalcançável.
E eu concluí que nós, mulheres, pressionadas pelo sistema patriarcal, estamos erradas em muitos momentos. Sim, precisamos urgentemente dar um basta neste círculo vicioso de perseguir a legitimação masculina. Mas, este mesmo sistema também aprisiona os homens. E eles não se apercebem disso. Se todas nós abrirmos mão de nossa sensibilidade, de nosso olhar atento, de nossa capacidade de afeto, de nossa empatia, de nossa habilidade em acolher e ajudar, talvez tenhamos um pouquinho de vantagem pessoal em dados momentos, mas, sem dúvida, se todo mundo passasse a agir como um homem branco heterossexual, o que a gente conseguiria, mesmo, seria tornar o mundo um lugar pior.