Pensamentos crônicos

Perdidos dentro da fotografia

Escrito por Juliana Britto

A facilidade em registrar e divulgar imagens de nosso cotidiano pode estar comprometendo nossa capacidade de distinguir entre fantasia e realidade.

Ando cansada de ver tanta gente feliz, bonita e bem-sucedida nas redes sociais. Prefiro outro tipo de ficção: dou preferência aos livros. Confesso, com certo constrangimento, que, na maioria das vezes, sequer reconheço meus amigos e alguns parentes nas fotos que compartilham. São personagens de uma história que ainda não li. Dia desses, levei vários minutos para reconhecer a minha colega de trabalho em um dos seus infinitos posts diários. Somente quando Rebeca, minha vizinha, comentou sobre a imagem é que liguei os pontos. Fulana estava mesmo irreconhecível.

Os filtros usados à exaustão são aplicados de tal forma que os seres de verdade passam a ter vergonha de serem de verdade. Eu sou um deles. Morro de vergonha de ser clicada e não me reconhecer, de destoar da cena. Ver uma imagem de si mesmo é sempre um estranhamento. “Essa sou eu?”, nos perguntamos silenciosos no íntimo. Apesar de tudo isso, não nego o direito que temos de fingir, eu mesma finjo enquanto escrevo. O patológico é não sabermos diferenciar o real do imaginário.  

Um médico conhecido nosso posta milhares de fotos diariamente com a antiga turma do colégio público em que estudou. Eles se reencontraram recentemente e parece que vivem viajando, cada fim de semana num lugar diferente. Me pergunto até quando alguns deles vão aguentar ostentar um padrão de vida que sei que não têm. Talvez seja apenas recalque meu, afinal a minha incapacidade para estar em estado de festa o tempo todo não impede que os outros o façam. Talvez o ordinário da vida, as coisas concretas e rotineiras não sejam para todos. Ou meu salário é que é curto para me dar a esses luxos essenciais. Sou uma invejosa enrustida.

Outro dia, vi fotos de uma amiga que está se separando do marido. Viviam num relacionamento abusivo de ambas as partes. Nas fotos, eles estavam bonitos e juntinhos, devidamente acompanhados de um litrão, parecia até que eram garotos-propaganda da marca de cerveja. Sei que essa foto é antiga, provavelmente de uns dois ou três anos atrás, no aniversário do Marcelo. Quem não conhece os bastidores, ao ver tais fotos, pode deduzir que eles ainda estão na maior pegação, em lua-de-mel eterna, um casal perfeito.

Será um recado? Uma ameaça ou simplesmente um desejo? Por que minha amiga insiste nessas postagens se o cara já saiu de casa e está vivendo com outra? Fico preocupada com as gêmeas, filhas deles. Nas fotos, parecem manequins em oferta, já sabem ostentar sorrisos artificiais e congelados, fazem poses quase sensuais para crianças. Elas não têm nem 11 anos e passaram mais da metade da vida testemunhando brigas homéricas entre os pais, no entanto, assim como a mãe, só postam fotos em que a família aparece abraçada e em harmonia. Passam a maior parte do tempo sozinhas ou na casa de parentes. Minha amiga não percebe a solidão e a fragilidade das filhas?

Parece que não consegue mais sair da ficção, como ela mesmo diz: “Gosto mesmo é de causar!” Até o Marcelo, que está todo enrolado no banco, devendo a Deus e o mundo, insiste em publicar fotos nas baladas da moda, aparecendo sempre bem vestido ao lado de carrões, sorridente e por aí vai.

Esse negócio de tirar fotos instantâneas não fez bem para nosso ego. Antigamente, o filme tinha no máximo 36 poses, precisava ir para o laboratório de revelação e ainda corria o risco de queimar e perder tudo. Não me lembro de nos ocuparmos tanto tirando fotos. Claro que também havia falseamento, mas parecia ser em menor volume. Sobrava tempo para saborearmos os momentos e, quem sabe, fôssemos mais naturais, afinal, ninguém ficava fazendo pose o dia todo e todo dia. Só mostrávamos as fotografias para amigos e havia todo um ritual em explicar cada foto, onde e quando tiramos e o que estávamos fazendo.

Agora, parece que estamos explicando o tempo todo para todo o mundo o que fazemos ou fingimos fazer. E os famigerados vídeos? O que dizer dessa nossa compulsão narcisista em nos ver em movimento? Não sobra muito tempo para viver de verdade. Personagens e diretores de um grande documentário autobiográfico, não aprendemos que chega uma hora em que é preciso desligar as câmeras e sair dos personagens. Há vida in off. Corta!

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Juliana Britto

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