Canto dos contos

As 30 Famílias da Pathfinder

Escrito por Guilherme Alves

Em um futuro não muito distante, foi descoberto um planeta bem parecido com a Terra. 30 famílias seriam selecionadas para colonizá-lo.

Dizem que a Pathfinder foi a primeira nave a deixar a Terra, rumo a um planeta bastante semelhante ao nosso, quando um grupo de milionários decidiu se unir e viabilizar o projeto, que levaria 30 famílias para fora de nosso sistema solar e monitoraria seu desenvolvimento. Infelizmente, ela jamais chegou a seu destino: atingida por uma chuva de meteoros, se desviou de seu caminho e acabou naufragando em um planeta extremamente inóspito. Como saiu muito de sua rota, os equipamentos na Terra não conseguiram rastreá-la, e, durante 30 anos, suas 30 famílias tiveram de lutar sozinhas por sua sobrevivência, esperando por um resgate que nunca chegava.

Os mais velhos diziam que a única forma que essas 30 famílias encontraram para sobreviver foi dividindo tarefas. Havia os turnos no rádio, para tentar mandar uma mensagem para a Terra; os turnos no radar, para tentar encontrar outras naves que estivessem passando; os turnos para conseguir comida; para alertar sobre ataques de animais selvagens; para manter o equipamento sempre funcionando; e muitos outros. Cada um recebia uma função, e deveria desempenhá-la com o máximo esmero, para não por em risco toda a comunidade. De fato, muitos não resistiram e sucumbiram, aos animais, ao clima, ou ao seu próprio desespero. A cada ano, eram menos os membros das 30 famílias da Pathfinder.

Por outro lado, enquanto o resgate não chegava, nasceu toda uma geração que jamais havia posto os pés na Terra; que só a conhecia pelas histórias que os tripulantes originais da Pathfinder contavam. O problema é que essa geração que nunca viu a Terra também não acreditava que todo o trabalho para tentar conseguir um resgate serviria de alguma coisa. Queriam sair explorando, acreditavam que deveria haver outras partes do planeta mais agradáveis para se estabelecer uma colônia.

Os mais velhos diziam que já haviam tentado, que não havia qualquer lugar para onde se pudesse ir em segurança, e que o melhor curso de ação era continuar tentando contato com a Terra, que eles iriam enviar uma nave para nos resgatar. Eles achavam que era mentira, que os mais velhos sentiam algum prazer mórbido em controlar nossas vidas. Eu era apenas uma criança, não entendia o que estava acontecendo, mas me lembro de quando tudo começou a mudar.

Um dia, alguns jovens quiseram furar a fila do almoço. Mais tarde, um grupo se afastou do acampamento sem autorização. No dia seguinte, um deles não se apresentou para seu posto, e alegou que não concordava com aquele esquema ditatorial. Logo, todos os jovens se revoltaram, e começou uma grande batalha. Nosso radar foi destruído, muitos dos mais velhos foram mortos. Um dos jovens assumiu o comando, e disse que o melhor a se fazer era cada um cuidar de si, assumir seus próprios riscos, e, como todos queriam o melhor para a comunidade, tudo se ajeitaria sozinho. Tudo passou a ser voluntário, sem turnos, sem obrigações. Um grande grupo partiu em busca de um local para uma colônia, prometendo nos buscar caso o encontrassem. Jamais retornaram.

Sem a divisão de tarefas, aquilo que foi considerado “menos importante” acabou abandonado – como o rádio, já que praticamente ninguém mais acreditava que conseguiria se comunicar com a Terra. Os mais fortes dominaram todos os serviços essenciais, como a produção de comida e a manutenção da nave, e logo estabeleceram um sistema segundo o qual os mais fracos, principalmente os mais velhos, não tinham acesso à maior parte do que era produzido. O pior é que eles achavam isso certo, e viviam repetindo que somente os que merecessem deveriam sobreviver. Houve uma segunda revolta, e mais da metade dos que restavam morreu nos combates. Os demais morreriam de frio, de fome ou comidos pelos animais. Quando a nave do resgate finalmente chegou, éramos apenas cinco. Nem eu sei direito como sobrevivemos.

Outros dois morreram durante a viagem de volta. Quando chegamos à Terra, os três que ainda restávamos fomos tratados como heróis. Celebridades. Praticamente todos os dias tínhamos convites para entrevistas. Jornais, revistas, televisão. Todos queriam saber nossa história, todos queriam saber como estava sendo nossa adaptação. Dos outros que chegaram comigo, um não aguentou a pressão diária a que éramos submetidos e tirou a própria vida. A outra, uma moça, desapareceu – dizem que mudou de identidade e foi viver na América Central, em um local de condições mais parecidas com as do planeta onde nasceu e cresceu.

Do que se passou no planeta distante, nunca revelamos muito. Já recebi inúmeras ofertas para contar a verdadeira história das 30 famílias da Pathfinder em um livro. Já fui procurado até por estúdios de cinema. Nunca aceitei. Sempre digo que era muito jovem, que não me lembro de quase nada. Mas a verdade é que eu tenho vergonha.

Sobre o autor

Guilherme Alves

Nascido numa tarde quente de verão no Rio de Janeiro, casado aparentemente desde sempre, apaixonado por idiomas (se pudesse, aprenderia todos). Professor de inglês porque era a única profissão que parecia fazer sentido, blogueiro porque gosta de escrever desde que a Tia Teteca mandava fazer redação. Coleciona DVDs, tem uma pilha de livros que comprou mas ainda não leu maior que uma pessoa (de baixa estatura) e um monte de jogos de tabuleiro que não tem tempo de jogar. Fanático por esportes, mas só para assistir, porque é um pereba em todos eles. Não se pode ter tudo na vida.

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