Canto dos contos

Atrás das grades

Escrito por Juliana Britto

Muitas vezes, vivemos atrás das grades, ainda que ninguém perceba.

A casa estava toda fechada. Além das trancas habituais, havia barras de segurança em todas as portas e janelas. A varanda era gradeada e acima do muro a cerca elétrica era um aviso eloquente para que estranhos não se aproximassem. Tais mecanismos dificultavam um pouco quando era preciso entrar ou sair de casa; no entanto, eram aceitos como um mal necessário. O alarme de segurança foi ativado e todos já estavam dormindo.

Às duas da madrugada, Nestor acordou paralisado, não conseguia se mexer. A escuridão do quarto aumentava seu pavor crescente. Implorou, num sussurro, que acendessem a luz do cômodo ao lado, para que uma fresta de luz pudesse lhe salvar da angústia provocada por mais um pesadelo.

Desde criança ele tinha o sonho recorrente de ter cometido um crime hediondo. Nas cenas oníricas, nunca ficava claro que crime era esse. Suspeitava de que fosse um homicídio. O drama era tentar conviver com esse fato em segredo, pois as pessoas de seu convívio não suspeitavam dele. Por desconhecerem esse crime terrível, não poderiam descobrir do que ele fora capaz.

A vítima em questão foi um zé ninguém, um ser humano descartável, de quem ninguém sentiu falta, sequer notaram a ausência. Somente Nestor pensava nele dia e noite, em um desassossego sem fim. Conseguiria viver com a culpa? E se fosse descoberto, aguentaria o castigo merecido? Tentava se preparar mentalmente para os anos infindáveis no cárcere. Mesmo se fosse preso, suportaria viver, sabendo do que fora capaz? Em cada momento bom que vivia, sob a máscara da inocência, rondavam-lhe estes questionamentos implacáveis. No pesadelo, que parecia durar uma vida inteira, ele experimentava no seu mais íntimo ser, a angústia de ter que conviver com as consequências de seu ato impune.

Ainda que outros ignorassem seu drama existencial, Nestor sabia e isto era suficiente para aterrorizá-lo. De onde vinham esses sentimentos? Do personagem do sonho? Dele mesmo, autor do sonho? Ou dele, como bicho que pode tirar a vida de outrem e continuar vivendo como se nada tivesse acontecido?

É difícil traduzir em palavras os dramas projetados em nossa mente durante o sono. As palavras são insuficientes para exprimir o real sentido de tais experiências. Nestor não ignorava esse fenômeno. Nunca conseguira contar esses pesadelos para ninguém. Como explicar que, no sonho, queria continuar a levar uma vida normal, mesmo sabendo o quão monstruoso fora? E se ele voltasse a cometer o crime ou outros mais? Seus princípios cristãos e humanitários não permitiriam tal torpeza ou permitiriam? É possível viver com a consciência pesada? É possível viver normalmente ignorando a culpa de um crime? É possível viver, amar, ter filhos, conversar com os pais e saber quão longe se poderia chegar? Pessoas da vida real cometem crimes e continuam a viver. Normalmente? Em alguns desses pesadelos, que apareciam com grandes intervalos de tempo ao longo de sua vida, sobretudo, da adolescência e juventude, o crime estava encoberto há muitos anos e esse fato era o mais angustiante para ele: a prova incontestável da sua falta de consciência. Seria ele um psicopata?

Nestor tentava racionalizar a experiência traumática desses sonhos como uma espécie de movimento de construção de seu caráter. No entanto, em toda a sua vida, nunca conseguiu admitir, ainda que num sonho, que ele fosse esse tipo de pessoa. Através das cenas e sentimentos misturados, enigmáticos, simultâneos e reais como são todos os pesadelos, Nestor vivia uma história sem fim. Repetia passos da nossa civilização recente, por isso, acordava imóvel e implorando por um facho de luz. Com a boca seca, tateou até a cozinha e depois verificou todas as portas, as janelas e o alarme de segurança.

Sobre o autor

Juliana Britto

2 comentários

  • Perfeito, Ju! Fiquei aqui pensando nos meus próprios crimes que se revelam em sonhos tantas vezes: alguns cometidos, outros que apontam para um desejo de serem realizados. E, como ninguém pode nos alcançar no sonho, ficamos prisioneiros apenas de nós mesmos. E, acordados, seguimos a vida, aos olhos dos outros, virtuosa.

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