Canto dos contos

Um moribundo

Escrito por Juliana Britto

Como negar ajuda a um amigo que precisa, por mais inevitável que pareça seu destino?

A noite anterior fora extraordinariamente silenciosa, fato terrível para quem tem insônia. Havia muitas coisas a providenciar antes de voltarem para a cidade, por isso, a família foi para a cama mais cedo. Alice já tinha adiantado a arrumação das bagagens e João, cansado, roncava sob as cobertas quentes. Não suspeitavam dos dramas alheios. Em um fim de semana como aquele, o desejo maior era o de se desligarem da rotina e de seus problemas e inquietações.

Já havia amanhecido quando ele veio agonizar perto de quem amava. Deitou-se à frente da porta de João. O ferimento sangrava e dele exalava um cheiro de salmoura velha, uma mistura de sangue, sal e coisa em putrefação. O cheiro era grosso e forte, um alerta de que a vida está sempre por um fio.

Ao vê-lo em tal estado, Alice, com o coração aos pedaços, perguntou-se como era possível que o amigo tivesse se transformado tanto assim e em tão pouco tempo. Aquele ser desfigurado diante dela era mesmo o amigo querido do casal? Os olhos dele demonstravam uma tristeza tão envergonhada que sequer pedia ajuda. Apenas quedara ali. Sem esperança? Ou total ignorância de seu destino? Não se lembrava mais da briga que dias atrás lhe ferira a face. Sabia apenas que doía muito. Sua respiração já estava comprometida. Não conseguia ingerir nada havia alguns dias. Definhava a olhos vistos. Ainda estava vivo porque era forte e tinha se alimentado bem nos últimos meses. Seu corpo robusto e musculoso acumulara uma reserva e dela estava sobrevivendo. Não estava só. Os animais da casa não se afastavam dele em momento algum. Calados, quietos, reverentes à sua dor, faziam-lhe silenciosa companhia. Sabiam que velavam um moribundo? Era comovente ver como os mais jovens, apesar da pouca idade, compreendiam que algo muito sério e triste estava acontecendo. Quem ensina sobre a morte aos pequeninos?

Dentro da casa, Alice, impotente, sofria. O que ela poderia fazer? Pedir ajuda? Para quem? Naquelas circunstâncias, os vizinhos não sairiam de casa para acudir. Aconselhariam que deixasse o ferido encontrar o destino que escolheu ao se envolver em briga de cachorro grande. Dariam lições de moral, falariam do perigo das más companhias, das suas saídas noturnas, das brigas, das disputas por namoradas. Como é possível ser tão indiferente e cruel? Há quem consiga acreditar que, ao deixar de ajudar uma vítima, as suas mãos permanecerão limpas. Aguardam a “natureza” agir, sem nenhuma dor na consciência.

O cheiro que exalava dos ferimentos estava empestando toda a casa, ainda que estivesse de portas e janelas fechadas. A natureza estaria avisando que caso ninguém ajudasse aquela vida definharia ali até a morte? Ou estava apenas transformando a antiga força em fraqueza, o que era no que não será mais? Ele não chorava, não reclamava, apenas fedia, enquanto continuava a existir em sofrimento. Alice pensou na sua covardia e impotência. Todos temos nos tornado impotentes. Qual seria o preço a pagar por ousar tomar providências? Ele não era da família, apenas alguém que se fizera amigo, aparecendo em casa sem avisar e sem convite. Ao ver o casal passando pela vizinhança demonstrava uma genuína e gratuita alegria. Nos dias que correm, quantos humanos demonstram o que sentem de forma tão espontânea e com tal entusiasmo? Alice fez apelos. Apesar de não crer no sobrenatural, orou, suplicou, mas nenhuma ajuda chegava. Sentiu-se em uma ilha deserta. O tempo transcorria lento e indiferente como sempre. No entanto, depois de longas e agonizantes horas de espera, finalmente a ajuda chegou. Munido de coragem e vontade de salvar aquela vida querida, João conseguiu remover o amigo agonizante e o levou ao hospital. Acreditava que ele iria sobreviver, desde que o tratamento fosse feito com rigor e constância.

Na região onde esses fatos aconteceram, onde a vida é marcada por tantas carências e não se pode desperdiçar nenhum recurso, o casal foi julgado como uma dupla de tolos. Causou estranheza nos habitantes locais o fato dos dois insistirem em socorrer um cachorro andarilho como aquele, que nem ao menos lhes pertencia. João e Alice não se importavam. Jamais se perdoariam se deixassem o seu amigo morrer sem assistência. Têm absoluta certeza de que o animal, se pudesse, faria o mesmo por eles. Comovidos, agradeceram ao querido amigo, que os ensinou a acreditar e a amar novamente.

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Juliana Britto

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