Pensamentos crônicos

Os Cambitos da Rainha

Escrito por Guilherme Alves

Traduzir é adaptar, e isso dá trabalho.

No filme Os Infiltrados, há uma cena emblemática na qual o personagem de Leonardo di Caprio entra em um bar lotado de valentões, se dirige ao balcão e pede: “um suco de oxicoco”.

Levanta a mão aí quem já sabia o que era oxicoco antes de assistir a esse filme. Dentre os que não sabiam, quantos entenderam a piada? Sim, porque isso era pra ser uma piada: oxicoco, em inglês, é a frutinha chamada cranberry, e cranberry juice, o tal suco de oxicoco, é uma bebida, nos Estados Unidos, relacionada a crianças. Seria como se ele entrasse em um bar de valentões no Brasil e pedisse um Toddynho.

Traduzir é adaptar, e, quando o tradutor não se dá conta disso, piadas se perdem, conversas ficam sem pé nem cabeça, e séries ficam com títulos involuntariamente engraçados, como a tal O Gambito da Rainha, que se tornou assunto nas redes sociais não por sua trama ou atuações, mas por seu título, traduzido literalmente. Gambito é uma jogada do xadrez na qual um dos jogadores engana o outro, sacrificando uma de suas peças em troca de uma vantagem na jogada seguinte. O problema é que, em inglês, gambit, o nome da jogada, é uma expressão corrente, mas, em português, gambito não é – levanta a mão agora quem costuma usar gambito no dia a dia.

Aliás, abrindo um parêntese, existe um X-Man chamado Gambit, e eu me lembro de uma entrevista com Jotapê Martins, responsável por traduzir os nomes dos personagens para a Editora Abril, dizendo que optou por deixar seu nome em inglês justamente para que ninguém achasse que ele tem as pernas finas. Fecha parêntese.

Cada língua tem palavras e expressões de uso corrente que nem sempre possuem equivalentes exatos quando traduzidas. Para usar dois exemplos com os quais estamos acostumados graças aos filmes, ninguém que eu conheço chama policial de tira, nem xinga os outros de bastardo; mesmo com toda a repetição, essas palavras ainda não entraram para o nosso vocabulário, embora já não as estranhemos. Com outras, porém, é preciso tomar cuidado: não somente não basta fazer uma tradução literal, como também encontrar a tradução mais apropriada pode ser um trabalho complexo.

Piadas e trocadilhos são especialmente difíceis de traduzir justamente por causa dessas peculiaridades. Eu me lembro de um episódio de uma série que eu adorava, Step by Step, no qual um dos personagens era confrontado com um problema dificílimo, e falou “piece of cake” (que, literalmente, significa “pedaço de bolo”, mas em inglês, é usado para comentar que a pessoa achou aquilo fácil de se fazer); quando outro personagem perguntou se ele realmente tinha achado o problema fácil, ele respondeu que não, mas que tinha tido uma vontade súbita de comer bolo. Pois bem, em português existem várias expressões que se encaixariam nessa piada, como “mamão com açúcar” ou “sopa no mel”, mas o tradutor optou por usar “eu quero moleza” – o que fez com que, quando confrontado sobre se achou o problema fácil, o personagem respondesse que teve uma vontade súbita de comer um bolo mole. Pois é.

Por favor não me entendam mal, minha intenção com esse texto não é reclamar do trabalho dos tradutores, e sim justamente o contrário: chamar atenção para a importância dele. Um bom tradutor percebe todas essas coisas, faz as melhores escolhas, adapta. O trabalho do bom tradutor, inclusive, normalmente passa despercebido, pois tem menos pontos que chamam atenção, geram reclamações ou viram piada. Infelizmente, a cada dia parece que menos gente acredita no trabalho de um bom tradutor, principalmente porque hoje, com dicionários e ferramentas de tradução podendo ser instalados em qualquer celular, muitos acham que traduzir é fácil, e aí preferem contratar o mais barato, ou fazer o trabalho eles mesmos, o que resulta em oxicocos, bolos moles e gambitos.

Voltando ao gambito para finalizar, muita gente reclama de filmes que não têm seus títulos traduzidos literalmente; embora eu reconheça que, algumas vezes, é feito um trabalho porco, na maioria delas, principalmente por questões de marketing, é impossível usar a tradução literal. Um exemplo recente que gerou muita controvérsia foi o filme de Ghost in the Shell, estrelado por Scarlett Johansson, que virou A Vigilante do Amanhã.

Eu posso não concordar com a escolha, mas compreendo por que ela foi feita: O filme é a versão norte-americana de uma produção japonesa que, apesar de bastante famosa, não é conhecida do grande público brasileiro, então, deixar o filme com seu título original, ou traduzi-lo para O Fantasma na Máquina (a tradução aproximada mais aceita, já que a literal seria O Fantasma na Casca) não seriam boas opções para atrair público – uma pessoa que não sabe do que se trata e vê em cartaz um filme chamado O Fantasma na Máquina pode achar que é um filme de terror, por exemplo. O Gambito da Rainha, mais uma vez involuntariamente, pelo menos agora serve de exemplo de por que essas alterações são necessárias.

Sobre o autor

Guilherme Alves

Nascido numa tarde quente de verão no Rio de Janeiro, casado aparentemente desde sempre, apaixonado por idiomas (se pudesse, aprenderia todos). Professor de inglês porque era a única profissão que parecia fazer sentido, blogueiro porque gosta de escrever desde que a Tia Teteca mandava fazer redação. Coleciona DVDs, tem uma pilha de livros que comprou mas ainda não leu maior que uma pessoa (de baixa estatura) e um monte de jogos de tabuleiro que não tem tempo de jogar. Fanático por esportes, mas só para assistir, porque é um pereba em todos eles. Não se pode ter tudo na vida.

8 comentários

  • Como tradutor profissional, concordo na questão das adaptações serem necessárias. As traduções da Netflix deixam MUITO a desejar. Hoje mesmo estava assistindo à série coreana “Sweet Home” e um dos personagens, que obviamente falava em coreano, teve sua fala traduzida para “você cruzou a linha”, tradução essa que, além de soar amadora, deixa evidente que o trabalho foi feito em cima de uma tradução em inglês, e não do original em coreano, já que o contexto da fala deixava claro se tratar de uma tradução da expressão inglesa “you crossed the line”, que significaria algo como “você passou dos limites”. Da forma como ficou, o espectador que não fez a associação com a língua inglesa deve ter ficado perdidinho, achando se tratar de uma competição de corrida. São erros assim que prejudicam a imersão do expectador na obra.

    No entanto, devo dizer que, como enxadrista, discordo totalmente da sua colocação no tocante à série “Queen’s Gambit”. Gambito é o nome correto da jogada em português. Seja esse nome comum ou não, deve sim ser mantido na tradução, uma vez que a série foi pensada para o jogador de xadrez, tendo contado inclusive com assessoria do Garry Kasparov, ex-campeão mundial do jogo. O erro, na realidade, foi terem traduzido Queen para Rainha, sendo que a peça se chama Dama. Inclusive, a versão em espanhol evitou o vexame, tendo traduzido corretamente o título para “Gambito de Dama”, em vez de “Gambito de Reina”.

    • Aleks, você tem todo o direito de discordar. Porém, eu, enquanto não-enxadrista e pessoa que só sabe que existe uma jogada no xadrez chamada gambito graças aos X-Men, reforço minha opinião: nem sempre correto significa apropriado. Oxicoco também é o nome correto da fruta em português, e nem por isso a tradução do filme Os Infiltrados ficou boa. Que o nome gambito fosse mantido nos diálogos da série seria aceitável, mas, no título, me soa completamente equivocado, mesmo estando correto. No original em inglês não há problema, visto que gambit é de uso corrente na língua inglesa, em espanhol não sei, mas em português não atende a ninguém além dos enxadristas, e esse é meu argumento: não há nenhuma indicação na série de que ela foi pensada para jogadores de xadrez, ou que ela se destina apenas a jogadores de xadrez – a maior parte do público, inclusive, é de gente que não conhece a fundo as regras do xadrez. O título é o cartão de visitas de uma obra, devendo contribuir para torná-la acessível ao maior número de pessoas possível, e não focar em apenas um grupo, mesmo que esse grupo seja o retratado na obra.

      • Por mais que a série se destine ao grande público, o enxadrista não deixa de ser visado como consumidor final da obra, até porque existe uma atenção muito grande aos detalhes do jogo que deixam evidente que não se trata de uma produção voltada para amadores. Não é como, por exemplo, “Jurassic Park” que toma liberdades criativas com a arqueologia e a biologia dos seres pré-históricos que justificaram a adaptação para “Parque dos Dinossauros”, sob a guisa de as crianças não saberem do que se trata a palavra “jurássico”. Palavra essa que, aliás, eu diria ser até mais comum em português do que “Jurassic” em inglês, a título de expressões como “fulano é jurássico!”, o que, ainda assim, em nada obstou o título original.

        O exemplo da adaptação dos nomes de personagens de quadrinhos também não me parece convincente. Deixaram o nome do x-man Gambit em inglês com este pretexto, de que “gambito” soaria esquisito por fazer meia dúzia de pessoas pensarem em “pernas finas” (por remissão ao italiano “gamba”, talvez?), ao passo que a mesma editora achou por bem traduzir Juggernaut para Fanático, sem levar em conta as conotações religiosas que deram a um personagem que não tem, absolutamente nada a ver com o nome em português que lhe deram. E quanto ao Iron Monger? Monge de ferro? É isso mesmo, produção? O que Obadiah Stane tem de monge, eu realmente não sei, só sei que ninguém deve ter aberto um dicionário para procurar o significado de “monger” antes de vir com essa solução “preguiçosa”, a qual eu arrisco dizer também inclui deixar o nome “Gambit” em inglês.

        Enfim, adaptar “Queen’s Gambit” para qualquer coisa além de ‘gambito’, guiando-se pelo mínimo denominador comum, seria um insulto não só aos enxadristas que acompanham a obra (insulto esse que, por sinal, já ocorreu de qualquer forma com a tradução errada de que “queen” para “rainha”), como também subestimaria o intelecto do espectador não enxadrista em lidar com palavras que não façam parte de seu vocabulário imediato.

        Engraçado você ter tocado no filme de Ghost in the Shell, porque, na realidade, ele chegou ao Brasil com o título de “A Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell”. Ou seja, ainda que tenha ganhado esse título novo, o filme manteve, na forma de subtítulo, o título em inglês do mangá de que foi adaptado e que, inclusive, já foi lançado no Brasil pela editora JBC com esse mesmo nome – motivo pelo qual, do ponto de vista da publicidade, não seria tão sábio abandonar totalmente o título original. Talvez essa seja a melhor solução. Eu pessoalmente, não me iria opor a um título como “Gambito da Dama: a Virada da Rainha” ou coisa do tipo.

        • Jotapê Martins, responsável por traduzir os quadrinhos dos X-Men na época em que as primeiras histórias com o Gambit chegaram por aqui, declarou em entrevista à revista Wizard ter optado por deixar o nome dele em inglês para que as pessoas não achassem que ele tem as pernas finas, não por remissão ao italiano gamba, mas por semelhança entre as palavras gambito e cambito, que significa, justamente, perna fina. Quanto ao Fanático, Monge de Ferro etc., jamais vi nenhuma entrevista nas quais seus tradutores se justificassem, então, embora também as considere equivocadas, não posso opinar.

          Ghost in the Shell chegou ao Brasil apenas como A Vigilante do Amanhã. Após uma gritaria dos fãs da obra original, a distribuidora decidiu adicionar o subtítulo, o que ocorreu com o filme já em cartaz.

          Com todo respeito, Gambito da Dama: A Virada da Rainha é nome de filme pornô.

          No mais, não adianta ficarmos discutindo. Continuo achando que um titulo que 90% das pessoas que assistem a série não compreende não está cumprindo seu papel, por mais que esteja correto e agrade a quem é do ramo. Se você entende o contrário, nada posso fazer.

          • Disso do título de Ghost in the Shell eu não sabia, mas reclamaram com razão, afinal a adaptação não pode distanciar o título de uma obra já publicada. Outra coisa que não se pode esquecer é que muitas dessas palavras “exóticas” passam a adentrar no vocabulário comum justamente por osmose popcultural, podendo até mesmo adquirir novos significados. A exemplo disso temos a palavra “nimrod” em inglês, cujo significado original era “caçador” e que depois se tornou comum como xingamento graças a um episódio de Looney Tunes em que o Pernalonga a usa para se referir ao Hortelino.Antes a palavra era bem desconhecida em inglês e depois passou a ser de uso comum, com o significado de “idiota” ou “estúpido”. Aliás, o próprio termo “gambit” em inglês surgiu devido ao xadrez. Antigamente, a palavra se destinava apenas à jogada em questão e depois foi ganhando uso corriqueiro para outras situações, por via de metáfora. Talvez “gambito” nunca tenha entrado em uso corrente na língua portuguesa pelo fato de o xadrez não ser tão popular aqui no Brasil quanto é em outros lugares. Quem sabe a série não traga essa popularidade à palavra? Omitir a palavra, alienando e subestimando os consumidores finais, dentre os quais se incluem entusiastas do xadrez, é a pior alternativa na minha opinião.

  • Vou discordar do seu exemplo principal. A jogada do xadrez, em português, é o Gambito da Dama (https://pt.wikipedia.org/wiki/Gambito_da_dama)

    Ou seja, o problema não é que quase ninguém conhece gambito, o problema é que quase ninguém conhece xadrez mesmo.

    O único problema desse título foi ter mantido traduzido para Rainha ao invés de Dama.
    Pergunte a um enxadrista o que acharam do título.

    • Henrique, o trabalho do tradutor é tornar o texto acessível ao maior número de pessoas possível. Se fosse uma série voltada para enxadristas, não haveria problema nenhum em traduzir o título para O Gambito da Dama, pois o público-alvo saberia do que se trata. Só que não é. E a grande maioria das pessoas que vai assistir a série não vai saber o que é um gambito e não vai entender o título, e é isso que caracteriza uma tradução ruim.

      Quanto a conhecer ou não xadrez, essa não é a raiz do problema. Existem expressões relacionadas a esportes que entram para a linguagem cotidiana, outras não. Ninguém precisa conhecer as regras do futebol para compreender expressões como “marcou um golaço”, “baixa essa bola”, “tomou cartão vermelho” e outras, porque elas já são tão usadas que ninguém nem se lembra mais de sua origem. Agora imagine um tradutor nos Estados Unidos, passando um texto do português para o inglês, usando a expressão “got a red card” e reclamando que o público não entendeu porque não conhece futebol.

      Insisto, traduzir é adaptar, e adaptar é usar as expressões conhecidas da população em geral, e não somente de um grupo específico. O trabalho do tradutor não pode se resumir a traduzir expressões literalmente e o público que vá pesquisar para compreendê-las. Isso, na minha opinião, empobrece a obra traduzida e dificulta o acesso a ela. Problemas que um bom tradutor sabe que deve evitar.

Comente! É grátis!