Meu primeiro pensamento ao acordar vem acompanhado da consciência de que há um pedaço que não fazia parte do meu corpo até outro dia. Como o formigamento que tenho por dormir com o braço sob o travesseiro, o pedaço é meu novo despertador.
O pedaço traz a realidade, aquela que me tira do sonho, no meio da madrugada, junto à gata inquieta caçando insetos na penumbra.
Durmo com a porta do quarto aberta para a varanda, assim vejo a claridade nas primeiras horas, doendo nos meus olhos.
Do mesmo jeito, carrego esse novo pedaço de mim, um pedaço que já deveria ter secado como uma verruga e morrido, mas que segue vivo, se espremendo em todos os cantos dentro do peito.
A dor virou um pedaço. A tristeza virou companhia. Carrego esse pedaço, e vou acompanhada, seguindo a vida e a rotina.
Invejo os felizes pela tela do celular. Relembro que também já estive ali. Revivo um passado que parece ter acontecido ontem, tão vivo em imagens e tão rico de cor, de cheiros, de sons e palavras. O pedaço se une a outra parte do que eu sou: o amor, que também insiste em sobreviver.
Carrego a dor, o pedaço, para o chuveiro, onde às vezes me desfaço sob as águas, derramando em gotas o que me afoga. A tristeza, companhia, fica ali, junto do meu corpo, me abraçando em meio à espuma do sabonete, como se fosse uma doce dançarina da morte me convidando a ir num tango derradeiro.
O espelho tenta refletir algum ânimo, mas o pedaço e a companhia são mais nítidos que os ossos saltados das clavículas.
Mais um dia. Menos um dia. O pedaço que nunca diminui, e às vezes só parece aumentar, como um tumor tomando conta do espaço entre as costelas e o coração.
A companhia me persegue, e mesmo quando tento afastá-la com distrações, o tempo na ampulheta escorre rápido e já é hora de senti-la aqui, de novo. Ela me alisa os cabelos, me arrasta pra cama, me chama pelo nome. Me pede pra não resistir.
Encaro que o pedaço não sai daqui de dentro, só preciso fazer os movimentos certos para que ele não cause uma crise. Deixo a companhia dormir comigo, seguro a sua mão e aceito o seu beijo, num pacto de que amanhã vamos acordar juntas.
Esse pedaço me faz escrever, essa companhia me sussurra no ouvido o que ela quer dizer.
Sigo como um mero instrumento, entre cadernos, cartas, mensagens, conversas, espalhando a palavra desses dois, tentando arrancá-los de mim, mesmo sabendo que eles já viraram parte do que eu sou.
[…] dor que virou um pedaço de mim agora se metamorfoseia em uma falta. Aquela cantada por Djavan, o pedaço do coração de […]