Correspondência

Pedaço

Foto de Annie Spratt na Unsplash
Escrito por Rose Carreiro

Meu primeiro pensamento ao acordar vem acompanhado da consciência de que há um pedaço que não fazia parte do meu corpo até outro dia. Como o formigamento que tenho por dormir com o braço sob o travesseiro, o pedaço é meu novo despertador. 

O pedaço traz a realidade, aquela que me tira do sonho, no meio da madrugada, junto à gata inquieta caçando insetos na penumbra.

Durmo com a porta do quarto aberta para a varanda, assim vejo a claridade nas primeiras horas, doendo nos meus olhos.

Do mesmo jeito, carrego esse novo pedaço de mim, um pedaço que já deveria ter secado como uma verruga e morrido, mas que segue vivo, se espremendo em todos os cantos dentro do peito.

A dor virou um pedaço. A tristeza virou companhia. Carrego esse pedaço, e vou acompanhada, seguindo a vida e a rotina.

Invejo os felizes pela tela do celular. Relembro que também já estive ali. Revivo um passado que parece ter acontecido ontem, tão vivo em imagens e tão rico de cor, de cheiros, de sons e palavras. O pedaço se une a outra parte do que eu sou: o amor, que também insiste em sobreviver. 

Carrego a dor, o pedaço, para o chuveiro, onde às vezes me desfaço sob as águas, derramando em gotas o que me afoga. A tristeza, companhia, fica ali, junto do meu corpo, me abraçando em meio à espuma do sabonete, como se fosse uma doce dançarina da morte me convidando a ir num tango derradeiro.

O espelho tenta refletir algum ânimo, mas o pedaço e a companhia são mais nítidos que os ossos saltados das clavículas. 

Mais um dia. Menos um dia. O pedaço que nunca diminui, e às vezes só parece aumentar, como um tumor tomando conta do espaço entre as costelas e o coração.

A companhia me persegue, e mesmo quando tento afastá-la com distrações, o tempo na ampulheta escorre rápido e já é hora de senti-la aqui, de novo. Ela me alisa os cabelos, me arrasta pra cama, me chama pelo nome. Me pede pra não resistir. 

Encaro que o pedaço não sai daqui de dentro, só preciso fazer os movimentos certos para que ele não cause uma crise. Deixo a companhia dormir comigo, seguro a sua mão e aceito o seu beijo, num pacto de que amanhã vamos acordar juntas. 

Esse pedaço me faz escrever, essa companhia me sussurra no ouvido o que ela quer dizer.

Sigo como um mero instrumento, entre cadernos, cartas, mensagens, conversas, espalhando a palavra desses dois, tentando arrancá-los de mim, mesmo sabendo que eles já viraram parte do que eu sou.

Sobre o autor

Rose Carreiro

Nascida num 20 de Outubro dos anos 80. Naturalmente petropolitana, com passaporte carioca. Flamenguista pé frio e expert em não se aprofundar em regras esportivas. Fã de Verissimo – o Luis Fernando – e Nelson, o Rodrigues (apesar de tudo). Poser. Pole dancer com as melhores técnicas para ganhar hematomas. Amadora no ofício de cozinhar e fazer encenações cômicas baratas. Profissional na arte de cair nos bueiros da Lei de Murphy.

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