Correspondência Sem meias palavras

Mulher: objeto de julgamento

Escrito por Rose Carreiro

Dê confiança a um feio e ele agirá como se fosse bonito. 

Eu poderia começar este texto com outro clichê, muito mais famoso, literário, sério, mas igualmente difundido nos últimos dias: O machismo faz com que o mais medíocre dos homens se sinta um semideus diante de uma mulher (Simone de Beauvoir).

Com qualquer uma das frases, podemos nos conectar ao desdobrar de alguns eventos indigestos do último mês: 

No primeiro, Paolla Oliveira, atriz, publica um vídeo sambando (é rainha de bateria da Grande Rio novamente este ano) e é criticada nas redes sociais. Comentários maldosos e ofensivos sobre seu corpo são postados, em sua maioria, por homens de pouca relevância e menos ainda atributos estéticos.

No segundo, Yasmin Brunet tem seu corpo e sua aparência criticados, também de forma ofensiva, objetificada, e é alvo de etarismo. O ofensor: um cantor falido, de meia idade, marcado por seus raros cabelos com corte químico, suas denúncias de agressão e um abdômen que avança os limites morais que o separam dos elásticos da bermuda. 

O que os dois episódios têm em comum? Os medíocres de Simone, ou os feios da frase inicial, de autoria desconhecida, que se sentem livres para opinar e julgar os corpos, a idade e até hábitos de uma mulher. Sim, o que os motiva a fazer isso provavelmente, mais do que o recalque de que nunca poderão usufruir da companhia ou, mais distante ainda, de algum tipo de relacionamento carnal com uma destas mulheres, genuinamente, é a liberdade que eles têm por garantida para agirem desta forma.

A reação “da Internet” em massa, é claro, foi de rebater a esses comentários com a realidade: quem pensam que são esses feios, medíocres, acabados, para falarem assim dessas mulheres lindas, bem-sucedidas e desejadas? 

Concordo com tudo isso? Concordo. Os homens que comentaram o vídeo de Paolla são, em sua maioria, mal diagramados, carecas, flácidos, um bando de INCEL. Rodriguinho, que falou de Yasmin, tem seios. E são caídos. Parece um personagem extraterrestre vindo diretamente de alguma versão de baixo orçamento de Star Wars. E a gente mal se lembrava dele até que o mesmo fosse escalado para o BBB. 

Mas, argumentar desta forma muda de foco o problema: a questão não é serem um bando de horrorosos falando de mulheres lindas. Ainda que fosse o Henry Cavill, sem camisa, com seu peitoral bem malhado e peludo, seu sotaque britânico, arrumando aquela mecha de cabelos ondulados na testa, sorrindo com seus dentes charmosamente tortos e tecendo este tipo de comentário, ainda estaria errado, for Christ’ sake

A questão é, mais uma vez, serem homens se sentindo no direito de criticar a aparência e as atitudes de mulheres. Afinal, como minha amiga e cronista Mayara Godoy apontou de forma cirúrgica em sua crônica Mulheres Fortes: a vida do homem pertence ao homem, já a vida da mulher pertence à sociedade.

Este é o problema que todo mundo vê, ninguém enxerga, nada acontece. Homens continuam se sentindo livres, isentos de recriminação, para nos objetificar, ao nos julgar, dizer como deveríamos nos cuidar, comer, agir, falar, emagrecer, engordar, não envelhecer (como se fosse culpa nossa!). Parece que o simples fato de a gente existir como mulher vem carregado de um defeito. Ou, como disse outro dia Karnal num podcast: na misoginia, o defeito é ser mulher. 

E, infelizmente, não são só os homens que “julgam nossos defeitos”. Outras mulheres também agem assim, ou de forma ainda mais cruel, competindo e recriminando outras mulheres. Basta ver os comentários do vídeo da Paolla Oliveira. E você nem precisa acessar uma rede social pra isso: quantas vezes ouvimos uma amiga dizer que Meryl Streep é linda porque envelheceu bem? Que fulana se acabou depois que tal evento aconteceu na vida dela?

Quem de nós não ouviu – ou foi – uma mulher se lamentando por ter sido traída, trocada por outra que era mais feia, mais velha, menos inteligente, menos estudada, que já tem filho, que nem sabe cozinhar, que é mais “rodada”, mais pobre, que usa pantacourt ou tem um gosto cultural duvidoso? 

Para nós, mulheres, dói ter de por a consciência para trabalhar e reconhecer a hipocrisia, mas é um começo. Assumir que já esteve neste lugar e que fez isso é um passo para evoluir e se distanciar dos medíocres da Simone e dos feios da Internet. Para os homens, o buraco é mais embaixo, já que a maioria se esforça para gostar de mulheres ou enxergar em nós algo além de algumas curvas e um par de buracos que podem satisfazer suas vontades. 

Para mim, a questão se encerra aqui, com uma triste constatação: não importa quem são os nossos agressores e críticos – sejam eles feios, bonitos, velhos, jovens, homens, mulheres, a sociedade, o Estado, as organizações, sejam eles o diabo. Nós continuaremos sendo alvo de julgamentos, críticas, de ódio gratuito.

As mulheres nunca terão paz, nunca serão donas das suas vidas, nem nunca serão vistas como iguais e detentoras dos mesmos direitos de um homem.
Não enquanto todos se sentirem livres para enxergá-las como mero objeto de julgamento. 

Sobre o autor

Rose Carreiro

Nascida num 20 de Outubro dos anos 80. Naturalmente petropolitana, com passaporte carioca. Flamenguista pé frio e expert em não se aprofundar em regras esportivas. Fã de Verissimo – o Luis Fernando – e Nelson, o Rodrigues (apesar de tudo). Poser. Pole dancer com as melhores técnicas para ganhar hematomas. Amadora no ofício de cozinhar e fazer encenações cômicas baratas. Profissional na arte de cair nos bueiros da Lei de Murphy.

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