Sem meias palavras

Sim, a cultura do estupro existe, e precisamos falar sobre isso

Escrito por Leitor / Leitora

Antes de começarem essa leitura, anotem ou memorizem aí que horas são. E preparem-se, pois este texto vai ser longo e pesado.

Este não é um assunto agradável, mas é necessário. Para escrever este texto, eu me despi. Me despi, inclusive, da minha identidade; não por mim, mas por achar que não tenho o direito de expor algumas pessoas que, inevitavelmente, seriam identificadas por associação; me despi da minha necessidade de deixar esse assunto ali, quietinho no canto dele, porque não é nada fácil lembrar do momento em que fomos violadas. Estou aqui para meter o dedo na ferida; para jogar a merda no ventilador.

O que é cultura do estupro? É invenção de esquerdista?

Você acha que não existe uma “cultura do estupro”? Considera que isso seja invenção de esquerdalhas ou de “feministas mal-amadas”? Então, você com certeza nunca teve seu corpo violado em uma situação em que não podia fazer nada para se defender. Eu já… e, talvez por ser mulher, não foi só uma vez. Isso sem mencionar que cultura do estupro vai muito além de violação de nossos corpos.

A cultura do estupro começa em casa

Sim, a cultura do estupro começa em casa, com o pai disseminando piadinha de mau gosto sobre o médium que abusou sexualmente de centenas de mulheres e que agora está preso. Sabe quando sua vizinha comenta que fulana “estava pedindo” porque usava uma saia curta demais ou porque ficava andando sozinha pela rua à noite? Cultura do estupro! Sabe quando você, mulher, está na balada e um cara começa a te pagar um monte de bebida pra você “se soltar mais”? Cultura do estupro! E não adianta você não ser estuprador e dizer que é contra o estupro se você ajuda a disseminar esse tipo de cultura (espalhando memes e piadinhas machistas entre seus amigos).

A cultura do estupro está muito mais presente no nosso dia a dia do que parece. Mas já estamos acostumados com ela.

Mas é possível combatê-la! E este é um papel de todos e todas

A cultura do estupro não é combatida SOMENTE eliminando os estupradores do cerne da nossa sociedade, essas questões precisam ser debatidas e problematizadas. Você, homem, antes de replicar algo aos seus amigos, reflita se aquilo menospreza as mulheres… se sim, ao invés de compartilhar, converse sobre isso com eles. Se não quiser conversar, por considerar que você só tem amigo escroto e sabe que vai perder teu tempo, “tudo bem”, ao menos não contribua para a retroalimentação dessa cultura – um tipo de cultura que é, de fato, inútil.

Aproveite e faça novos amigos, porque se você sabe que não consegue conversar com eles sobre esse assunto sem sentir-se ridicularizado, significa que precisa ser mais seletivo com suas amizades.

Todas nós já fomos assediadas em algum momento da vida

Agora, pare para raciocinar comigo: gostaria que você, homem ou mulher, pensasse nas cinco mulheres que são mais próximas de ti. Pergunte a elas quantas já sofreram algum tipo de abuso sexual (lembrando que perturbação sexual também entra aqui), seja aquela mão boba na balada, que elas nem tinham como saber de onde veio, ou uma violação mais agressiva, seja ela uma provocação no meio da rua em frente a um quintal de obras.

Questione-as e reflita: por que isso é tão comum? Em que momento os meninos aprendem que têm algum direito sobre os corpos das meninas? Com certeza, ninguém falou pra eles, na escola ou em casa, que estuprar uma mulher era uma coisa bacana e aceitável… mas, por algum motivo, isso acontece MUITO. Todos os dias (a cada 4 minutos, para ser mais exata). Se isso acontece, é porque existe uma cultura encoberta por detrás disso tudo.

A cultura do estupro muitas vezes fica oculta. E a hipersexualização feminina é uma das suas formas mais comuns e socialmente aceitas.

Até pouco tempo atrás, isso era “normal”… Mas, nem sempre o que é “normal” é o certo

Lembro-me de uma festa em família, dessas em que todo mundo enche a cara e começa a contar histórias. Meus tios relembraram, aos risos, que um tio deles (tio-avô meu, já falecido na ocasião), quando era mais jovem, queria muito uma moça da vila onde morava. A moça sempre “fugia” dele, mas certa vez, quando ela saiu da missa, ele a seguiu. A esposa do meu tio-avô estava de resguardo, porque tinha um filho recém-nascido e essa moça “fujona” andava a pé e ele, a cavalo. Ela tentou correr e ele, LITERALMENTE, laçou a mulher com uma corda, como se ela fosse uma vaca. Isso deve ter sido lá pela década de 60, no interior do interior… Ele a arrastou para o meio do mato e, adivinhem o que aconteceu?

Sim, meus tios contaram essa história achando super engraçado, porque a moça em questão fora laçada tal qual eles laçavam as vacas no campo. Dizem que essa moça engravidou e ele, obviamente, nunca assumiu o filho, porque já era casado (o filho apareceu anos depois). Homem de família, sabem como é… Mas “onde já se viu uma mulher solteira andar sozinha pelo vilarejo”, não é mesmo? Com certeza “estava pedindo”. Viram? É assim que funciona a cultura do estupro!

As vítimas são, frequentemente, silenciadas, seja pelos pré-julgamentos, seja pela cultura vigente. Muitas vezes, as vítimas são culpabilizadas, como se tivessem pedido por aquilo.

E, já que estamos falando de família, minha avó contava que ela tinha 13 anos quando começou a namorar escondido com meu avô, que tinha 21. Hoje isso seria crime. Aí algumas pessoas dizem: “Ah, mas essa era uma questão cultural…”. Sim: cultura do estupro.

Olha a família aí de novo

E por falar em avô, meu avô paterno abusou sexualmente de uma filha (adotiva) dele (em princípio, parece que ele “respeitava” as mulheres que tinham o mesmo sangue que ele). Toda a família ficou sabendo e ninguém fez nada. Até hoje, todos fingem que nada aconteceu e, quando a chata feminista aqui tenta problematizar o assunto, todo mundo se abstém e finge demência. Aliás, se eu quiser um dia inteiro de silêncio no grupo da família, é só falar sobre como a vida de mulheres que foram abusadas sexualmente pode ser arruinada.

Essa tia adotiva fugiu da casa dos meus avós quando completou 18 anos. Arrisco dizer que, pra ela, era menos infernal passar necessidade e ser dona do próprio corpo do que viver sendo assediada pelo pai e hostilizada pela mãe (sim, isso acontecia… minha avó não a via como uma vítima e sim como uma “rival”, uma mulher que estava ali para roubar o marido dela). Nem é preciso dizer que sempre que toco nessa ferida, gero “mó climão” e silêncio no grupo, né? E, sim, sou sempre a única pessoa que traz esse tipo de assunto à tona. E fico ali, como se estivesse jogando vôlei com uma parede (vulgo “falando sozinha”)…

Assunto bom pro almoço de domingo

Vamos continuar falando de família? Afinal, esta é uma instituição tão importante, que em 2019 ganhou até um Ministério! Então não podemos deixar de problematizar algumas questões! Eu, quando tinha nove anos, sofri abuso sexual e o abusador era tio de uma prima minha (em segundo grau). Ele era aquele tiozão super queridão, sabem? Ela super adorava e confiava naquele homem, e isso fez com que eu também confiasse nele.

Um belo dia de verão, ele nos convidou para tomar banho de rio, mas exigiu segredo. Ele foi muito claro: enfatizou que não poderíamos nunca contar para nossas mães, pois se elas soubessem, ele nunca mais nos levaria para o rio. E a gente adorava banho de rio. Que criança não gosta? Então, ele nos levou até lá. O rio era afastado do centro da cidade e era preciso adentrar pelo meio de um mato para chegar ao leito, mas ele, malandramente, nos instruiu que o seguíssemos a uma distância segura (para ele, no caso), “de pelo menos uma quadra e meia” (para que ninguém percebesse que estávamos com ele e, assim, ninguém pudesse afirmar que o viu entrando no mato com duas crianças, né?).

Até quando?

Essa minha prima era um ano mais velha que eu. Chegando no rio, ele falou que todo mundo deveria tirar a roupa, para que não fôssemos vistos de roupas molhadas depois (sabem como é, melhor não dar bandeira!). Tiramos a roupa e entramos no rio. Ele nos ajudava a entrar na água em segurança, e sempre com bastante responsabilidade, ou seja, sempre nos segurava bem, com aquelas mãos enormes, para garantir que não tivesse risco de nos afogarmos. Claro que ele estava apenas preocupado com nossa segurança, e o fato de eu sentir o pênis dele roçando em mim deve ter sido pura “imaginação infantil”, né não? Afinal, crianças imaginam muito essas coisas mesmo.

Felizmente, eu tinha um certo pudor e não quis ficar dentro do rio nua com ele tocando em meu corpo. Saí da água, me vesti e fiquei sentadinha esperando, enquanto ele e minha prima se divertiam na água. Eu não posso afirmar o que acontecia, mas sou capaz de dar um palpite de que não foi nada bom para a cabecinha dela (já que essa menina transou com o primeiro namorado, aos 13 anos, engravidou aos 14 e depois abandonou tudo e foi se prostituir)… São muitos os casos de mulheres que foram abusadas e, sufocadas pela dor do silêncio, sentindo culpa pelo o que lhes aconteceu quando eram apenas crianças, acharam uma maneira de se punirem.

Quando o abuso vem do pai

Eu também tenho uma amiga, bem próxima, que foi abusada sexualmente pelo próprio pai, aos 13 ou 14 anos. Ela nunca se prostituiu, mas ela nunca mais confiou em homens para se relacionar na intimidade e, até hoje, prefere ter relacionamentos com outras mulheres. Vejam bem, não estou querendo justificar que essa é a explicação para a homossexualidade, mas ela mesma considera que, no caso específico DELA, isso pode ter, sim, contribuído para sua opção sexual. Não foi determinante, mas contribuiu. Ela não confia em homens, pois o homem em quem ela mais confiava, o homem que deveria protegê-la, a violou. Quem nunca passou por isso talvez não consiga mensurar o tamanho dessa violência.

O perigo pode estar em qualquer lugar

Tá bom, chega de falar mal de família! Isso aqui está ficando pesado demais… vamos falar de abuso sexual partindo pessoas desconhecidas? Eu não vou me ater, aqui, a relatos de mulheres que me contaram que alguém passou a mão no bumbum delas no meio da rua enquanto andavam de bicicleta, ou de homens que se masturbavam as observando brincar quando crianças (sim!). Prefiro trazer a minha experiência pessoal mais uma vez. Ou melhor, duas. Porque abusaram de mim duas vezes enquanto eu dormia dentro de um ônibus de uma linha interestadual (mas eu “tava pedindo”, né? “onde já se viu uma mulher dormir ao lado de um desconhecido?”). Aproximadamente 10 anos se passaram entre uma situação e outra e vejam como os fatos se assemelham, apesar dos abusadores serem totalmente diferentes:

Nas duas vezes, eu conversei com o meus algozes antes do abuso. Falamos de amenidades. Fui simpática, porque sou naturalmente falante e extrovertida. Eles devem ter entendido isso como um consentimento… mas, esperaram que eu dormisse para tocarem em mim.

O Sonâmbulo do Busão I

Na primeira vez, eu era novinha, tinha uns 20 anos. Dormi de lado e o “cidadão de bem” ao meu lado achou que seria uma boa oportunidade para meter a mão no meu bumbum. Meu sono é leve, acordei na hora! Ele imediatamente tirou a mão, mas discutimos e ele disse:

_ Desculpe, moça! Eu sou sonâmbulo!

Eu pedi que ele saísse dali e ele se recusou, pois havia pago por aquele lugar. Um rapaz que estava no banco ao lado se ofereceu para trocar de lugar comigo.

_ Deixa que eu sento aí, moça… vamos ver se ele vai ser sonâmbulo comigo também!

Trocamos de bancos e não se falou mais no assunto. A história ficou por isso mesmo. E ele não teve outro ataque de sonambulismo.

O Sonâmbulo do Busão II

Na segunda ocorrência, eu já era uma mulher de 30 anos, portanto, mais bem informada e, recentemente, havia sido alterada a lei do estupro. As situações são muito semelhantes. Primeiro um “papo de ônibus” com o companheiro de viagem, depois (ele viu eu tomando Dramin para dormir), o “sonambulismo”.

Acordei com uma mão dentro da minha blusa, acariciando meu sutiã (!!!). Sonolenta e um pouco confusa, me mexi para que tirassem a mão dali. A mão saiu. Nesse instante, me dei conta de que eu estava dentro de um ônibus e que o homem ao lado era um mero desconhecido. Permaneci imóvel, tentando raciocinar, e confesso que eu mesma fiquei na dúvida de que aquilo havia acontecido, afinal, eu poderia ter sonhado, né? Para ter certeza, fingi que dormi novamente. Em poucos minutos, senti a mão dele acariciando minhas costas. Senti nojo e revolta, mas continuei fingindo.

Então ele, muito devagar (possivelmente para não me acordar), começou a colocar a mão debaixo da minha blusa novamente. Eu estava acordada. Friamente, quis esperar até que a mão dele ficasse em um ângulo no qual eu pudesse agarrá-la. Quando eu senti segurança suficiente para agarrar a mão dele, eu o fiz, e gritei:

_ O QUE VOCÊ PENSA QUE ESTÁ FAZENDO, SEU TARADO!?!?!?

Ele se assustou, algumas pessoas que estavam próximas acordaram e começaram a prestar atenção na nossa discussão. Ele ficou em pânico, porque eu não soltava sua mão (eu queria que todo mundo ali visse onde ela estava). As pessoas olhavam, mas ninguém interferiu em nada. Eu estava por conta própria. Visivelmente constrangido, ele saiu dali e foi sentar em outro lugar. Nesse momento, entrei em pânico. Comecei a chorar. Não conseguia acreditar que aquilo estava acontecendo de novo.

Liguei o celular e mandei uma mensagem para o meu companheiro, que me orientou a relatar o fato ao motorista do ônibus. Entrei na cabine e contei o que aconteceu, ainda chorando. Ele ficou visivelmente revoltado e perturbado, disse que pararia no primeiro posto policial. Foi exatamente isso que aconteceu, mas era um posto da Polícia Rodoviária Federal, que acabou tendo que chamar uma viatura da Polícia Civil no local. Os policiais chegaram, falaram comigo e, em seguida, pediram para falar com o suspeito. Ele foi interrogado na sala ao lado da que eu estava, então eu ouvia tudo o que ele dizia.

_ Ela está aí? Eu queria conversar com ela e pedir desculpas, é que eu tenho um transtorno de sono, sou sonâmbulo!

Eu juro que ri nessa hora. De nervoso, mas ri. Sonâmbulo… Mais um tarado sonâmbulo que me ataca no ônibus enquanto eu durmo! Não aceitei conversar com ele e, desta vez, não aceitei sequer que ele seguisse viagem no mesmo ônibus que eu. Nosso destino era o mesmo e eu não sabia com que tipo de pessoa eu estava lidando. Um homem que acha que pode meter a mão dentro da blusa de uma mulher desconhecida dentro do ônibus enquanto ela dorme, é capaz de qualquer coisa, inclusive de perseguir e de matar uma mulher que o denunciou às autoridades.

A Polícia Civil fez sua parte e não autorizou que ele seguisse viagem comigo. Infelizmente, eu não quis registrar o B.O., pois isso só poderia ser feito dentro da delegacia, que ficava a 20 quilômetros dali (e o ônibus já estava há quase duas horas parado ali, na beira da estrada). Pensei nas pessoas que estavam viajando e que teriam de ficar quatro horas a mais que eu dentro daquele ônibus… Mas hoje eu me arrependo de não ter formalizado a denúncia. Afinal, vai saber quantas vítimas esse homem já fez, antes e depois disso, e o meu boletim de ocorrência poderia servir, no futuro, como uma prova de que isso era reincidente. Não era sonambulismo. Era falta de vergonha na cara e de caráter!

Recentemente, o movimento #MeToo ganhou visibilidade global, depois que celebridades começaram a denunciar casos de estupro e assédio sexual.

O abusador nem sempre é um estranho num beco escuro, às vezes ele é um pai de família!

Esse homem, que quis se aproveitar de mim enquanto eu dormia, tinha uma esposa e uma filha. Eu tenho certeza que ele não gostaria que isso acontecesse com elas, mas ele fez isso comigo. E vai saber com quantas mais… Eu tenho certeza que sua mãe não o ensinou que ele poderia fazer isso com uma mulher, nem o pai… mas, de alguma forma, ele aprendeu que, se o fizesse, dificilmente seria punido. E isso é cultural. A prova disso é que as leis para esse tipo de abuso estão precisando ficar cada vez mais rígidas.

Todos os dias, centenas de mulheres são vítimas de constrangimento e perturbação sexual em ônibus urbanos e metrôs. Masturbação, ejaculação… nada disso é permitido em lei ou socialmente aprovado, contudo, os homens seguem fazendo. Existe até um humorista famoso aí que disse que o homem que embebeda uma mulher para conseguir transar com ela é um gênio… então, sim, leitores e leitoras, nós vivemos em meio a uma cultura que encoraja o estupro! Por isso, é uma cultura do estupro.

E agora, que horas são? Quantos minutos você dedicou a esta leitura? Se você dividir esse número por quatro, o resultado será a quantidade aproximada de mulheres que foram estupradas enquanto você leu este texto. Isso precisa parar! E todo mundo tem um papel importante nisso.

Comece fazendo sua parte, não tolere piadas machistas ou que banalizem uma violência sexual em forma de “humor”. Diga NÃO à cultura do estupro!

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