Toda novela a que eu assisto, o faço xingando do meu sofá. Mas eu sigo firme e forte, sempre me decepcionando com acompanhando minha novelinha das nove, porque gosto de ver como ela reflete certos padrões. Logo, como fiel espectadora, tenho propriedade para criticar o que venho observando em “A Dona do Pedaço”. Assim como a literatura, a teledramaturgia é uma arte – e toda arte tem uma função social. Contudo, tenho testemunhado um enorme desserviço a certas causas e lutas sociais em alguns núcleos desta história do Walcyr Carrasco. Falarei de dois deles.
1. Preconceito com os Sem-Teto
Este era para ser o núcleo de comédia, mas do qual não consigo rir, pois está ali apenas para se reforçar um estereótipo – e isso não tem graça. A mensagem que esse núcleo passa é de que “esse tipo de gente” não trabalha porque tem preguiça, corroborando a teoria de que todas as pessoas que invadem propriedades abandonadas são malandras e vagabundas. Embora isso possa acontecer, essa generalização deturpa a imagem de um grupo de pessoas que luta para tentar minimizar um problema social muito grave no nosso país: a falta de moradia. A maioria dos que vivem nessa situação precária não tem outra opção, pois nunca tiveram oportunidade de uma vida melhor. Além disso, romantiza-se um problema social trazendo o humor como pano de fundo.
Esse núcleo “engraçado” não representa os Sem-Teto, mas com certeza representa uma visão preconceituosa que boa parte da sociedade carrega a respeito deles. A aposta no humor até pode ter sido para deixar a coisa mais “leve”, mas isso acaba mascarando o problema, dando uma falsa sensação de que essas pessoas estão “se dando bem”, são felizes assim e que, portanto, não devemos nos sensibilizar à causa.
2. Machismo ao problematizar o aborto
A análise completa da família Guedes daria uma tese de doutorado, mas irei focar no episódio com a personagem Edilene. Ela era empregada doméstica dessa rica família e começou a ter um caso com seu patrão, Otávio (afinal, nada mais clichê do que isso). Na trama, Otávio é pai de Vivi Guedes, que fora adotada porque Beatriz, a esposa do ricaço, não podia engravidar. A jovem empregada (apaixonada, inocente e fortemente iludida) achou que seria uma boa ideia furar as camisinhas do amante para dar a ele um “filho de sangue”, presumindo que esse seria um sonho frustrado do patrão. Contudo, ele a obriga a fazer um aborto como “prova de amor” e a garota, que procura uma clínica clandestina, morre após realizar o procedimento.
Como o objetivo do dramaturgo não era escrachar a escrotidão masculina, reforçou-se o mito de que a mulher que faz um aborto procurou por isso (na trama, Edilene acaba provocado a própria morte, pois planeja a gravidez nas costas de Otávio). Ou seja, quando o novelista teve a ideia de abordar esse tema, ao invés de fazê-lo de forma a sensibilizar as pessoas para o problema, preferiu agradar a “família tradicional brasileira”, deixando no ar a mensagem de que “a culpa é sempre da mulher”. E, de quebra, inseriu uma parábola com uma figura mitológica na trama: um homem egoísta, escroto, galinha e infiel, mas que se preocupa em usar preservativo – praticamente uma lenda urbana.
Edilene não representa as mulheres que já realizaram aborto, ela representa o ponto de vista machista de uma sociedade extremamente patriarcal, que prefere culpabilizar as vítimas, em sua maioria mulheres desesperadas por terem sido abandonadas grávidas pelos parceiros. Mas, como na vida real, quem realmente desejou que o aborto acontecesse não sofreu nenhuma consequência.
Tá, mas e daí?
Sei que novelas são uma forma de entretenimento, mas elas não são só isso: elas refletem padrões sociais e ditam tendências – não só de moda, pois também influenciam todo tipo de comportamento. Então, embora eu saiba que cada novela nova será uma nova decepção, eu gosto de exercitar a crítica social-literária. Ou seja, nunca deixarei de xingar muito os novelistas (e a Globo) por insistirem nessa fórmula de se fazer ficção.