Carlos estava animado com mais um dia de trabalho. Desde jovem queria ser carteiro e não seria um profissional como os outros. Amava a palavra escrita da mão para o papel, gostava do contato com as pessoas e, por isso, fazia questão de entregar cada carta para o destinatário e olhar nos olhos de cada um.
Foi assim que ele chegou àquela vizinhança.
Estranhou de cara a rua cheia de buracos. Buracos são buracos em qualquer lugar no mundo, mas, naquela vizinhança, eles pareciam diferentes. Quase caiu em um deles, quando se distraiu observando uma catadora de material reciclável. Em seu carrinho, a mensagem: “O fim está próximo”.
O carteiro venceu os buracos, mas encontrou uma cadela preta com cara de poucos amigos. Carlos, como disse, não era um carteiro comum e logo fez amizade com o animal, passando a mão atrás das orelhas, um velho truque. Alguém gritou de uma casa “Aretha, vem comer!” e a cadela foi embora. O carteiro pode reparar melhor naquela vizinhança.
Na frente de uma casa, um rapaz de joelhos parecia refletir enquanto retirava ervas-daninhas do jardim. Ele era observado a meia distância por um gato que, com seus olhos azuis penetrantes, parecia querer dizer alguma coisa. Não muito longe, um senhor com um boné escrito “Lembrança de Poço de Caldas” conversava, de fato, com um cachorro. O cão olhava o homem com ar de complacência e respeito. O que diria se pudesse falar?
Na varanda de outra casa, chamou a atenção de Carlos dois casais de gêmeos. Sim, gêmeos. Vitória e Viviane (ele descobriu depois os nomes em uma carta destinada às duas) eram casadas com Roberto e Gilberto. Vi estava grávida de Beto. E Vi e Beto seriam padrinhos. Carlos se interessou pelo casal e observaria por mais tempo, não fosse o barulho de um tiro vindo do apartamento de um prédio vizinho. Uma ambulância chegou pouco tempo depois e o carteiro deu de ombros. Precisa continuar seu trabalho.
Em uma janela daquele prédio, um homem feminino fazia reflexões diante de um espelho. Em outra, uma senhorinha oriental praticava yoga, ignorando o som de sanfona que vinha do primeiro andar e os gritos de reclamações de Judite. Carlos deixaria a carta de Judite por último. Sua vontade mesmo era saber o que preparava um famoso chef de cozinha, que cortava cebolas próximo à janela da cozinha de seu apartamento. O cheiro era bom.
Enquanto caminhava, o carteiro esbarrou em um advogado, “Cezar Madeira”, ele soube o nome depois. O homem andava distraído com a cara colada no celular, provavelmente, em alguma treta em uma rede social. Aquilo tirou Carlos do sério. Ele odiava celular e mensagens de textos. Para ele, o ser humano precisaria se “e-solar”, isto é, se desconectar mais e estar fisicamente offline.
Era quase fim do dia, quando o carteiro chegou à última casa. O envelope era destinado a Gilberto, um homem de poucas palavras. Carlos tentou conversar com seu cliente, mas o homem não respondia. Aquilo intrigou o carteiro que invocou que precisava conhecer mais aquela história.
Por isso, olhou fundo nos olhos de Gilberto e, “vup”, trocou de lugar. Depois de um dia sendo o carteiro Carlos, Lucas queria experimentar uma nova vida.