Relatório de Evidências

Era sexta-feira

Escrito por Rose Carreiro

Hoje em dia, pode-se fazer quase tudo pela internet. Menos experimentar a vida real.

Era sexta-feira, último dia de recesso, chuva fina caindo. Eu poderia ter feito tudo o que precisava sem sair de casa. Abriria o iFood, escolheria o almoço, que chegaria em meia hora. Venderia os livros separados para o sebo em algum site de compra e venda, ou mesmo no marketplace do Facebook. 

Escolheria os aviamentos de que precisava para treinar a costura – com todos os itens já listados no bloco de notas do celular – no site do armarinho que entrega em todo o Brasil, e tem sede aqui em Londrina. Comprar os tecidos online também não seria um problema. 

E, depois de namorar aquele Casio vintage rosé por uns dois anos, decidi que usaria o dinheiro que ganhei de Natal para finalmente comprar meu relógio novo. Uma googlada no modelo me jogaria para o site com o melhor preço, e bastaria controlar a ansiedade de esperar por sete dias úteis para receber o meu presente.

Mas, era sexta-feira, último dia de recesso, chuva fina caindo. E uma das coisas que eu e meu bem mais gostamos de fazer nas poucas oportunidades que temos de explorar o centro da cidade é ir a lugares tradicionais. Passamos no sebo onde vendemos os livros (por uma pechincha, mas recebemos o dinheiro na hora, sem precisar responder para algum possível comprador se aceitaríamos troca) e seguimos. Almoçamos no Kiberama, restaurante que existe desde 1963, e ainda ostenta seus lustres e luminárias turcas com mosaico. E serve o melhor kafta que já comi, além de vender um molhinho de pimenta perfeito. 

A três quadras dali, entrei na Chafic Tecidos e voltei pra  infância, quando ia com minha tia até a Rua Teresa, em Petrópolis, para “comprar pano”. Era um passeio entre rolos de viscose, tricoline, metros e metros de estampas e padrões que coloriam vitrines e corredores. O atendente da Chafic, um senhor de roupa social com direito a vincos nas calças, cortou todos os metros de algodão de todas as estampas que escolhi. Disse a ele que queria algo para treinar, e prontamente fui apresentada ao balcão de saldos, com peças em tricoline, jeans e até linho por 9,90 o metro.

No caixa, recebi a indicação de um armarinho perto dali, onde eu poderia achar os aviamentos. E foi onde eu conheci o Seu Pedro, que faz as contas dos clientes com papel e caneta, sem calculadora, e acha que a Contabilidade era melhor antes do computador, quando só precisava passar uma borracha na nota para fazer qualquer correção.

No caminho de volta ao estacionamento, a porta de uma pequena relojoaria onde já troquei pulseiras e baterias destacava na vitrine justamente o Casio vintage rosé que eu queria. Entrei decidida a comprá-lo e, além de obter um desconto no relógio sem nem ter pedido, tive o prazer de conhecer o Seu Francesco.

O italiano, que encontrou no meu sotaque um gancho pra contar de sua passagem pelo Rio (há mais de 60 anos, disse ele), relatou em poucos minutos como veio parar no norte paranaense. Vindo de barco da Itália, desembarcou em Vitória, seguiu para o Rio de Janeiro, e depois para São Paulo, antes de parar em Londrina, onde veio encontrar seu pai. Se estabeleceu aqui, criou duas filhas sozinho, e ensinou ao seu funcionário o ofício de relojoeiro, mas ainda trabalha na loja. Enquanto me contava sua trajetória até aqui, ele segurava uma máquina antiga, reclamando, meio em português, meio em italiano, que a engrenagem estava dura e por isso não funcionava direito.

Era sexta-feira, último dia de recesso, chuva fina caindo. Eu poderia ter aproveitado o conforto do meu lar e as facilidades da Internet. Mas coloquei os pés na rua, vi, provei, senti e ouvi. E voltei com muito mais coisas no coração do que nas sacolas. 

Sobre o autor

Rose Carreiro

Nascida num 20 de Outubro dos anos 80. Naturalmente petropolitana, com passaporte carioca. Flamenguista pé frio e expert em não se aprofundar em regras esportivas. Fã de Verissimo – o Luis Fernando – e Nelson, o Rodrigues (apesar de tudo). Poser. Pole dancer com as melhores técnicas para ganhar hematomas. Amadora no ofício de cozinhar e fazer encenações cômicas baratas. Profissional na arte de cair nos bueiros da Lei de Murphy.

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