Desacato Sem meias palavras

Chuva

Escrito por Leandro Duarte

Muita chuva. A Baixada Santista chora a dor dos rasgos de barro nos morros.

Chuva, muita chuva. Água pra todo lado, o dia inteiro e dia após dia. Foram 3 ou 4 apenas, mas pareceram meses, muita chuva.

Pra muitos de nós, foi um trânsito danado, baita aporrinhação chegar mais tarde em casa, cansado, cheio de fome e de ódio. Pra outros, uma infiltração na casa, que merda, tem o raio que queimou o micro-ondas, acabou a luz e chegou a pizza, 4 andares de escada, vai ser foda subir. Tá, eu sei que é uma merda, mas você olhou pro lado?

Baixada Santista, principal polo econômico do litoral do Estado mais rico da União. Maior complexo portuário da América Latina. Foi muita chuva, e no morro, meu amigo, o problema não é chegar uma hora mais tarde em casa, cansado e cheio de fome por conta da chuva. No morro, o problema é enfrentar esse trânsito com medo de não ter aonde chegar. A infiltração lá leva a parede, o micro-ondas já tá queimado, e o mano que entrega pizza tá tirando barro do quintal.

A chuva rasgou os morros, você consegue ver, ouvir o som, sentir a dor. O vermelhão do barro cortando o verde do morro assusta, uma ferida enorme em carne viva e gente morta. A água levou tudo de muita gente, até esse momento 44 mortos, 34 desaparecidos, mais de 500 desabrigados, no principal polo econômico do litoral do Estado mais rico da União, é bom lembrarmos.

Acaso do destino, desastre natural, sinal dos tempos, Deus. Todo ano é a mesma coisa, truta, desde quando me entendo por gente, todo ano tem “desastre” por conta das chuvas. E daí vagabundo arruma motivo pra responsabilizar o povo que vive na merda o ano inteiro, rezando pra chuva parar de molhar o seu divino amor.

O governador libera verba emergencial para aparecer no jornal, vagabundo sabe que todo ano acontece a mesma coisa, com mais ou menos intensidade. Sabe que dá pra impedir a dor dessas famílias, sabe que investimento em infraestrutura salva vidas, e sabe também que não rende voto, nem discurso de luto, nem Jornal Nacional. O gestorzão da porra gosta das câmeras, então que chovam-se.

Não vou ficar aqui romantizando o movimento natural e instintivo da população em ajudar a região, com seu trabalho no meio do barro, arrecadando recursos, etc. Essas pessoas sentem a dor dos seus iguais, não estão lá por prazer, nem pra aparecer no jornal. Estão lá com o coração em pedaços, ninguém queria estar lá, sentindo o cheiro fétido do descaso do Estado. Estas pessoas não deveriam estar lá, mas estão por que é preciso.

Saiba como ajudar as vítimas aqui.

Doe sabendo que não foi apenas um acidente natural e que poderia ter sido evitado. Quem poderia ter feito algo, não fez nada.

Sobre o autor

Leandro Duarte

Leandro, 33 anos, ganha a vida em projetos e TI, talvez por isso sem a menor paciência para toda essa bobagem nerd e cultura pop. Em resumo, inadequado. Grande demais para a poltrona do ônibus de todos os dias.
Pequeno demais para sorrir de tudo. Velho demais para um banho de chuva; muito novo para temer o resfriado. Direto demais para a palavra escrita, e de menos para se fazer compreender. Humano demais para viver de tecnologia. Humano de menos para largar tudo. Comunista demais para os dias de hoje. Comunista de menos para o que é preciso ser feito.
Mesmo inadequado, segue peleando. Como era de se esperar, falhando miseravelmente.

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