Desacato Divã-neando

Vamos falar, caralho!

Escrito por Leandro Duarte

Vamos falar, caralho. Por mais que poucos ouçam, deixe que saibam suas convicções, deixe ecoar.

É tempo de isolamento, mas a gente precisa falar, mano. É com você mesmo, é pra você esse papo, a gente precisa falar.

Se tem uma coisa que a quarentena tem feito por mim, é colocar os pensamentos em dia. Muitas vezes, a gente deixa questões importantes e que merecem uma reflexão mais profunda de lado por conta da rotina. Refletir cansa a mente e muitas vezes nos coloca num desconforto que nem sempre estamos dispostos a encarar.

Covardia pura, todos somos covardes vez ou outra com relação às análises pessoais, os conflitos éticos pelos quais todos passamos não são fáceis de solucionar, e refletir sobre eles é só o começo.

Uma dessas minhas reflexões é justamente sobre falar, sobre fazer com que todos saibam qual a sua opinião, sobre não fugir do confronto de ideias.

Alguns dias atrás, em um grupo de WhatsApp com os moleques do trampo, um cara enviou um vídeo desses bem babacas. No vídeo, um cara filma uma feira chinesa, foca os animais exóticos lá comercializados, xingando de todos os nomes e responsabilizando os chineses pelo advento do vírus que nos prende em casa. Em outras ocasiões, apenas ignorei essas merdas e segui a vida como se não soubesse da imbecilidade de quem espalha esse tipo de coisa.

Naquele dia, tava puto, falei um par, mandei à merda, chamei de xenofóbico. Vai tomar no cu, mano, a essa altura do campeonato e ainda tem gente escrota assim em um ambiente em que todos tinham acesso a informação, todos com terceiro grau completo, ou quase. Não é possível. Cerca de uma semana depois, recebi a mensagem que reproduzo abaixo:

“Leandrão
blz?
Mano, queria te pedir desculpas.
Fiquei pensando sobre seu comentário naquele vídeo que eu mandei no grupo, do mercado chinês e o mlk xingando geral…
Fui dar uma pesquisada a respeito tanto de xenofobia quanto da cultura dos caras.
Os caras tem 1,3 bilhão de china no país. A cultura dos caras é aquela.
O que eles têm pra comer (óbvio, classes mais baixa) é aquilo que se passa no mercado, cobra, morcego etc…
E não merecem ser desrespeitados pela cultura deles.
Independente se é parecida ou totalmente diferente da nossa”.

Jamais imaginaria receber essas mensagens daquele maluco, jamais imaginaria que minha revolta com o vídeo que provavelmente ele só encaminhou pelo hábito de ser babaca, provocasse uma reflexão naquela cabeça vazia, mas provocou. Percebe como às vezes a gente só precisa falar? Vamos falar mais, caralho!

Outro dia, um grande amigo compartilhou um vídeo com uma travesti recitando poesia. Um babaca qualquer, do tempo da faculdade, comentou uma piadinha homofóbica sobre como a travesti estava vestida. Na maioria das vezes, me calo em situações como essa, mas naquele dia também tava puto e resolvi simplesmente questionar. “Me explica o que você quis dizer com isso. O que te incomoda na roupa do rapaz?”. Depois de algum embate, o sujeito disse que não passava de uma brincadeira, que não era homofóbico e que se aquilo havia ofendido alguém, que lhe desculpasse.

Não, ele não se arrependeu, ele não mudou de ideia, não refletiu sobre o assunto. Mas o simples fato de ter sido confrontado lhe criou um desconforto, ele sentiu vergonha em ter todo seu preconceito exposto e fugiu do assunto, se acovardou. Por mais que não tenha mudado nada em sua cabeça, fiquei feliz em causar desconforto a um filho da puta homofóbico, e fiz isso apenas falando.

Vamos falar mais, caralho. Pode não surtir efeito nenhum no outro, mas garanto que gera eco em nós mesmos. Vamos falar.

Sobre o autor

Leandro Duarte

Leandro, 33 anos, ganha a vida em projetos e TI, talvez por isso sem a menor paciência para toda essa bobagem nerd e cultura pop. Em resumo, inadequado. Grande demais para a poltrona do ônibus de todos os dias.
Pequeno demais para sorrir de tudo. Velho demais para um banho de chuva; muito novo para temer o resfriado. Direto demais para a palavra escrita, e de menos para se fazer compreender. Humano demais para viver de tecnologia. Humano de menos para largar tudo. Comunista demais para os dias de hoje. Comunista de menos para o que é preciso ser feito.
Mesmo inadequado, segue peleando. Como era de se esperar, falhando miseravelmente.

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