Quase não saí de casa nos últimos 55 dias. Eu, que já estava desenvolvendo alguns TOCs como lavar a mão diversas vezes ao dia, fujo da covid-19 como o Bolsonaro fugiu de seus debates.
Não ter saído durante esse tempo gerou muita coisa: tédio, angústia, revolta, saudade, mais tédio e, principalmente, tempo para refletir e reconhecer meus privilégios.
Tem uma frase que eu gosto muito, dessas que viralizam na internet sem a gente saber o autor:
“Apenas duas coisas podem salvar o Brasil: consciência de classe e interpretação de texto”.
E ter consciência de classe, além de saber o que você e sua força de trabalho representam na sociedade, é também entender os privilégios que você tem dentro dela.
O Brasil tem uma desigualdade inadmissível, porém real, e a pandemia escancarou ainda mais tudo isso. Enquanto algumas pessoas podem trabalhar em casa, como eu e muitos conhecidos, outras não podem fazer a mesma coisa. E não podem não necessariamente porque não desejam, mas porque perderiam seus empregos, que são essenciais para suas subsistências.
Claro que tem uma horda de gente que não quer aceitar a veracidade do vírus e ligou um grande foda-se para todas as outras pessoas, mas muita gente tem ido trabalhar com medo, não apenas de ficar doente, mas de não ter mais trabalho se não seguir o baile.
E, eu, entediada, cansada de ficar em casa, fazendo delivery para tudo, me pego às vezes chorando quando penso nessas pessoas. E reconheço os inúmeros privilégios de ter a minha vida afetada, sim, claro, mas segura.
É o privilégio de ter uma casa, para começo de conversa, e poder trabalhar nela, com instrumentos que permitam isto; é ter computador e celular com conexão à internet para fazer pagamentos e pedidos online, e receber tudo em casa sem ter que enfrentar aglomeração; é morar junto com uma pessoa que amo e não estar passando sozinha por esse momento; é ter o que comer todos os dias e, inclusive, ter guloseimas para quando a ansiedade ataca; é ter acesso às informações e cognição para interpretá-las, além de poder usufruí-las para me cuidar e alertar outras pessoas; é ter consciência de classe e entender todos os meus outros privilégios e ficar muito triste e arrasada, mas ao mesmo tempo com possibilidade de ajudar os outros o quanto for possível…
Eu poderia escrever muitos outros privilégios que identifiquei nos últimos dias. O principal deles, no entanto, foi o de que até agora – quando o nosso país já extrapolou 10 mil mortes oficiais pela covid-19 – ninguém da minha família ficou doente.
Porque estar saudável neste momento é um grande privilégio, mas também motivo de gratidão e súplica: se puder, se a junção dos fatores que te trouxeram até este momento permitir, fique em casa.
Se você está revoltado(a) por não poder fazer determinadas atividades que antes eram comuns na sua vida; se você acha que o tédio é a pior coisa que poderia estar vivendo no momento; ou se você ainda não pensou sobre nada disso, aceite o meu convite e tire uns minutinhos do seu dia para refletir sobre tudo. Olhe pela janela e imagine o que acontece ao seu redor e, principalmente, fora da sua bolha.
Agora, mais do que nunca, é tempo de reconhecer privilégios.
[…] eu sou privilegiado pra caralho, gosto do meu trampo, tenho um bom salário, em comparação à média salarial do […]
[…] relativas à saúde, política ou economia, devo começar pontuando que estou bem e que é um privilégio que eu possa exercer as minhas atividades profissionais em casa. Já estive doente e hospitalizada, […]