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Suspensão de Descrença

Escrito por Guilherme Alves

Será que todo filme tem de ser fiel às regras do mundo real?

Uma reclamação muito comum dentre algumas pessoas que assistiram ao filme Matrix e suas sequências é que os agentes disparam saraivadas de balas contra Neo e seus amigos, mas não acertam nenhum tiro. Tirando o fato de que bandido sentando o dedo no gatilho sem atingir o mocinho é uma coisa que acontece no cinema desde a época do faroeste, há de se levar em conta que esse, a contrário do que essas pessoas costumam dizer, não é um “erro” do filme, e sim tão somente a aplicação de dois princípios narrativos presentes em praticamente todas as obras de ficção: a suspensão de descrença e a dicotomia entre veracidade e verossimilhança.

Suspensão de descrença nada mais é do que o espectador convenientemente ignorar uma coisa que a princípio seria absurda, “aceitando” que aquilo faz parte da narrativa. Dependendo do tipo de filme, ela é maior ou menor. Por exemplo, se estamos assistindo a um filme sobre a vida do Steve Jobs, a suspensão da descrença não pode ser muito grande; se o Steve Jobs se desviar de uma rajada de metralhadora a 30 metros, isso é um erro do filme. Mas, se estamos assistindo a um filme no qual as pessoas enfiam um cabo na nuca e entram num computador, ela pode ser um pouco maior.

Filmes de ação normalmente possuem um nível elevado de suspensão de descrença. James Bond pula de um avião dentro de um lago e sobrevive. Um tanque explode com o Rambo dentro e ele sai andando. Dom Toretto pula de um prédio pro outro num carro. Nada disso é possível na vida real, mas no filme de ação a gente aceita, porque é o que tem pra hoje, nem todo filme precisa ser documentário.

“Ah, então se o Dinossauro Barney aparecer com um espanador pra salvar a Trinity eu vou ter de aceitar?” Não, porque aí entra em cena (sem trocadilho) o segundo princípio ao qual me referi: veracidade e verossimilhança.

Fazer as coisas com veracidade é fazê-las de acordo com as regras do mundo real. Fazê-las com verossimilhança é fazê-las de acordo com as regras do mundo na qual o filme se passa. Um bom exemplo é Crepúsculo, no qual os vampiros brilham no sol: se um vampiro de Crepúsculo morrer torrado no sol, lá se foi a verossimilhança, mas, “só porque” estamos aceitando que os vampiros brilham no sol, não significa que temos que aceitar que um deles, de repente, vire um dinossauro. Porque nunca foi estabelecido que os vampiros de Crepúsculo viravam dinossauros.

Outro exemplo: Papai Noel. De acordo com a lenda, Papai Noel mora no Polo Norte. Se a gente coloca pinguins no quintal do Papai Noel, tá errado, porque eles são do Polo Sul. “Ah, mas você já aceitou que existe um velho que voa de trenó” – mas não importa, não tem verossimilhança.

“Ah, mas os agentes podem fazer de tudo com as regras da Matrix, não deveriam errar os tiros” – mas a gente não sabe até que ponto eles “serem incapazes de errar” é verossímil. Só quem pode responder isso é a Lana Wachowski. Como eles erram direto, a gente assume que não é, e pronto.

Em resumo, os tiros não acertam os personagens porque isso faz parte da narrativa do filme, assim como os lutadores darem saltos voadores fazem parte da narrativa de um filme de kung fu. Você pode não gostar disso e, por consequência, não gostar de Matrix. Mas erro do filme não é.

Sobre o autor

Guilherme Alves

Nascido numa tarde quente de verão no Rio de Janeiro, casado aparentemente desde sempre, apaixonado por idiomas (se pudesse, aprenderia todos). Professor de inglês porque era a única profissão que parecia fazer sentido, blogueiro porque gosta de escrever desde que a Tia Teteca mandava fazer redação. Coleciona DVDs, tem uma pilha de livros que comprou mas ainda não leu maior que uma pessoa (de baixa estatura) e um monte de jogos de tabuleiro que não tem tempo de jogar. Fanático por esportes, mas só para assistir, porque é um pereba em todos eles. Não se pode ter tudo na vida.

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