Relatório de Evidências

O que eu aprendi com meu gato autista

Escrito por Patrícia Librenz

Eu sempre observei no Gatão uma apatia e falta de interesse em interagir com as pessoas e os outros animais da casa (na época, eu tinha outra gata e uma cachorrinha – o que evidenciava ainda mais as diferenças). No começo, eu entendia como preguiça; depois, passei a achar que esse comportamento poderia ser uma doença. Contudo, eu o levava ao veterinário e ele sempre estava saudável. Por indicação desse profissional, cheguei a uma especialista em psicologia animal para investigar melhor as causas daquele comportamento estranho.

A tal terapeuta, obviamente, não era psicóloga: era uma bióloga especialista em gatos (com mestrado em Comportamento e Biologia Animal pela Universidade Federal de Juiz de Fora e doutorado em Ciência Animal por Harvard), com pesquisas sempre focadas em felinos. Tornou-se uma referência no comportamento desses animais, já tendo atuado em parques de preservação e zoológicos, inclusive com experiência no manejo de grandes felinos. Com a mudança para o interior, seu trabalho acabou ficando restrito aos animais domésticos; no caso, gatos.

A terapia do Gatão consistiu em três etapas. Na primeira, câmeras de vigilância foram instaladas em minha casa durante uma semana. Pelas gravações, a profissional observou o comportamento do Gatão em seu território, com e sem a intervenção de humanos. A segunda etapa consistia em intervenções da terapeuta no ambiente, com ajuda de brinquedos e petiscos. Por último, ela avaliou como ele se comportava fora do seu território. Com base nessas observações da especialista e em atividades específicas que ela aplicava, após algumas sessões, meu gato foi diagnosticado com autismo (condição cuja característica principal é a dificuldade de comunicação, o que afeta as interações sociais e também a formação de laços). O lado bom do diagnóstico foi descobrir que realmente ele não tinha nenhuma doença.

Mas você já tinha ouvido falar que existe autismo em gatos? Pois é, eu também não! Na época desse diagnóstico, ele tinha cinco anos; em julho deste ano, fará 10.

O que eu aprendi nesses (quase) 10 anos de convivência (sendo cinco de diagnóstico de autismo), basicamente, é que, assim como os humanos, cada bichinho precisa ter seu espaço e sua individualidade respeitados. Sempre que tentei forçar determinada situação (ou aproximação) com ele, foi muito mais difícil para me reaproximar depois. Ao contrário do Aleph, por exemplo, o Gatão não gosta de ser amassado (o Aleph ADORA!), agarrado, beijado. Ele sequer gosta que o peguem no colo. Se assusta com qualquer barulho, seja ele de algo caindo no chão ou de uma pessoa espirrando. Qualquer mudança de rotina é muito mais estressante para ele do que para nós ou os outros animais, isso serve para quando a gente muda de endereço e quando uma novidade é inserida no ambiente também (e isso serve tanto para outro animal na casa quanto para a chegada de uma visita ou de um móvel novo).

Qualquer movimento ou aproximação devem ser muito sutis, e ele rejeita ração diferente da dele, tanto que só consegui fazer três trocas ao longo de todos esses anos. Outro ponto interessante é que ele sempre só aceitou ração seca. Isso não se deve exclusivamente à minha rigidez quanto à dieta dele (já que Gatão tem insuficiência renal e precisa de ração especial – mas isso é assunto para outro post), pois uma característica alimentar dele sempre foi muito forte: ele jamais se interessou por outras comidas (nem mesmo petiscos, ração úmida, atum enlatado ou carnes) – ao passo que o Aleph quase entra no nosso prato enquanto comemos.

Embora muitos gatos pareçam “meio autistas”, cada um é único e, assim como cães (ou humanos), relacionam-se conosco de forma única. Apesar do Gatão parecer ser meio ranzinza, mal humorado (está sempre com aquela cara de bunda quem não dormiu bem), embora ele prefira interagir pouco (principalmente quando se comparado a outros animais que eu já tive, que interagem MUITO), pareça meio “diferentão”, ele tem a mesma capacidade de despertar nosso amor. Mas, como ele prefere ficar mais distante na maior parte do tempo, apreciando a própria companhia, os momentos em que ele decide se aproximar para pedir carinho são aproveitados por nós de forma muito mais intensa. Passa a ser um momento especial. Presumo que, nesse aspecto, não seja tão diferente da pessoa autista*.

Bom, acredito quase tudo isso que descrevi deve ser muito comum à maioria dos gatos, então a esta altura você deve estar se perguntando: “Caramba, será que meu gato também é autista?”. Relaxa… não é, não! Sabem por que posso afirmar isso? Porque eu inventei essa história. Não cem por cento dela, mas aquela parte da “psicóloga de bicho” e da terapia (no segundo e terceiro parágrafos) é absolutamente ficção – “e qualquer semelhança com a realidade deve ser interpretada como mera coincidência”. Nunca aconteceu (comigo). Sei que existem intervenções terapêuticas em animais com distúrbios de comportamento, mas nem sei se a atuação seria da forma como descrevi.

Contudo, todo o restante do relato sobre o temperamento do Gatão é real. E o diagnóstico de autismo, também. Entretanto, esse diagnóstico não é da terapeuta de gatos; é meu – e eu não sou especialista em comportamento felino (muito menos doutora em Ciência Animal por Harvard). Sou apenas uma pessoa (mais ou menos) normal, que gosta de gatos. Sou casada com um veterinário, mas eu mesma não estudei absolutamente nada sobre animais (sou apenas curiosa e leio um pouco a respeito). Diagnostiquei meu gato há alguns meses, do alto da minha experiência como revisora de textos, e baseada nos profundos conhecimentos que adquiri sobre autismo, na premiada série The Good Doctor. Minha formação em Letras e meu mestrado em Literatura podem ter colaborado com tamanha imaginação. Porém, para minha infelicidade, nunca pisei em Harvard.

Eu só quis escrever este texto para mostrar como uma mentira sobre um currículo pode passar batida quando tem uma historinha fofinha que serve de aporte e distração. No final das contas, eu admito que queria fazer uma piada com essa história de “doutorado em Harvard”. Afinal, está na moda mentir sobre estudos em Harvard e eu não queria ficar de fora da brincadeira…

* É importante deixar claro que, apesar de o Gatão ser chamado de autista por mim (inclusive na minha bio), ele não pode ser considerado autista, segundo os padrões científicos. Pois, até onde eu pesquisei, o autismo é uma condição que até agora só foi encontrada em humanos, não sendo possível afirmar sua existência em outras espécies. Então, seria incorreto afirmar que um gato é autista, principalmente se baseando em comparações do comportamento felino com o comportamento humano, pois gatos e humanos possuem naturezas muito distintas. Pode até ser que existam pesquisas sobre isso em andamento (talvez em Harvard?), mas elas ainda não são conclusivas (pelo menos não encontrei nenhum artigo sério a respeito).

Sobre o autor

Patrícia Librenz

Mãe de dois gatos, um autista e outro que pensa que é cachorro. Casou com um veterinário, na esperança de um dia terem uns 837 animais. Gaúcha no sotaque, pero no mucho nos costumes. Radicada em Foz do Iguaçu desde 2008, já fez mais de 30 mudanças na vida. Revisora de textos compulsiva, apaixonada por dicionários. A louca do vermelho. A chata que não gosta de cerveja. A esquisita que não assiste a séries. Dona da gargalhada mais escandalosa do Sul do Mundo. Mestra em Literatura Comparada, é fã de Machado e Borges, mas ignorante de Clarice Lispector e intolerante a Paulo Coelho. Não necessariamente nessa ordem.