Olhos no sinal, cabeça na lua e os pés divididos entre o freio, a embreagem e o acelerador: assim, na eternidade dos vinte e quatro segundos do semáforo, ela sobrevivia numa dessas tardes escaldantes de janeiro, onde o sol faz mais inimigos do que sombras nas árvores.
Desde cedo, sempre foi muito geniosa para retribuir elogios; transpirava cubos de gelo na cara do verão. Vestia-se para matar o tédio. Mas quase todos morriam diante da sua virtuosidade curvilínea, jogando facas sem ponta todas as vezes que seus olhos piscavam.
O destino contratou um detetive para tantas chamadas perdidas em seu celular. Distraída demais com a devoção dos outros, sua própria companhia lhe divertia mais do que maratonas de Seinfeld. Sua atenção parecia a Carmen Sandiego, ninguém conseguia prendê-la. A liberdade era seu orgasmo múltiplo e intransferível.
Quando o verde finalmente deu as caras, ela aumentou o volume do Stone Sour e cantarolou enquanto o velocímetro buscava números maiores. ‘Through The Glass’ ficava ainda mais deliciosa a 100 km/h. E ela, em qualquer velocidade.
Dirigia melhor o carro do que a própria vida. Transitava sobre o caos das relações como quem coloca barcos de papel para navegar num riacho de vodka barata. Sendo assim, nunca se vitimizou. Preferia fazer um circo com suas tragédias do que um paraíso de ilusões.
Pensava alto mas sonhava baixo, tinha receio de incomodar as estrelas para organizar uma eventual festa em comemoração de uma nova constelação em seu nome. Precisava apenas estacionar nessa vaga de amor próprio que descobriu. Mas acabou parando diante do próprio prédio.
Como de costume, deixou o espelho do elevador com vontade de morar no seu apartamento. Normalmente, pessoas se apaixonam por coisas, mas no caso dela, até o que é material consegue pensar abstrato e deseja ter alguns momentos de humanidade.
Entrou, pendurou as chaves num cabide de decoração feito por ela mesma e pôs-se a revirar gavetas. Entre contas pagas e cartões postais enviados por quase desconhecidos que se intitulavam amigos fraternos, encontrou pedaços de uma carta antiga, de destinatário anônimo. Justo ela que rasgava mais verbo do que correspondências, decidiu juntar aquele quebra-cabeça de papel num anseio de encontrar no passado o que não lhe acenava no presente.
O documento amassado tinha apenas uma frase. Ela leu em voz alta e sussurrou mentalmente para não convencer a razão do que a emoção gritava:
“Estar sempre no centro das atenções é ruim para quem mora no subúrbio.”
Então jogou os pedaços janela afora, na esperança que seus amores mudassem de endereço, ou ganhassem o suficiente para poder morar mais perto dela.