Relatório de Evidências

Ela só quer dançar!

Escrito por Patrícia Librenz

A nova cliente daquele jovem professor de dança tem 68 anos. O mais surpreendente, contudo, não é a sua idade e sim a finalidade para a qual ela o contratou. Ela não quer ter aulas de dança, ela quer um par para dançar aos domingos.

A nova cliente daquele jovem professor de dança tem 68 anos. O mais surpreendente, contudo, não é a sua idade e sim a finalidade para a qual ela o contratou. Ela não quer ter aulas de dança, ela quer um par para dançar aos domingos. Justo no domingo, o único dia em que ele consegue descansar. “Vou jogar o preço nas alturas para ela desistir”, pensou Eduardo mas, para surpresa do rapaz, a velha concordou em pagar… 1.500 reais por mês, sendo 50% adiantado! Como dinheiro não dá em árvore e professor de dança, com o perdão do trocadilho, precisa rebolar muito para conseguir ganhar essa quantia, lá se foi o jovem dançarino para um baile da terceira idade, em pleno domingo à tarde.

Chegando no local e hora combinados, ele pensou que fosse se deparar com uma senhorinha tímida e judiada pelo tempo. Mas dona Isaura era vaidosa, pra frente, se maquiava e se vestia muito bem. Legítima “coroa chique”. Eduardo fora contratado para dançar com ela durante três horas por domingo. Ela dispensou ensaios e aulas de dança. Assim que entraram no salão, escolheram uma mesa e dona Isaura não quis perder tempo: foram logo pra pista dançar. Eduardo foi surpreendido mais uma vez: a senhorinha era um “pé de valsa”!

Após quatro domingos bem dançantes, Eduardo – que achava que, por atender uma senhora de idade, iria se deparar com uma pessoa cheia de limitações, dificuldade de equilíbrio, coordenação motora e locomoção, além de possíveis problemas de autoestima e falta de traquejo social – teve suas expectativas derrubadas uma a uma. Ao final do quarto baile, dona Isaura disse ao “seu par de dança”, como ela gostava de chamá-lo, que gostaria de garantir a companhia dele para os bailões pelos próximos seis meses. Intrigado, o jovem quis entender:

_ Dona Isaura… eu adoro vir aqui dançar com a senhora, mas, francamente, a senhora é bonitona, comunicativa, extrovertida, e ainda dança bem… está cheio de homem aqui que fica olhando pra senhora, que eu vi! Se a senhora vier sozinha pro baile, não vai faltar candidato pra dançar com a senhora…

_ Se você quiser, pode aumentar teu preço que eu pago!

_ Não é isso, dona Isaura! Não se trata de dinheiro. Aliás, até se trata, porque embora esse dinheiro seja de grande ajuda pra mim, eu acho que a senhora está gastando muito para uma coisa que a senhora não precisa!

_ Preciso, sim! Porque eu não quero dançar com ‘esses véio’, eles ficam me paquerando… eu não quero arrumar namorado: eu só quero dançar! É por isso que eu te pago.

_ Mas por que a senhora não quer um namorado? A senhora é tão bonita! Aproveite!

Foi então que a donda Isaura, sem falsa modéstia, proferiu uma palestra:

_ Eu sei que sou bonita, mas homem dá trabalho demais… vou aproveitar o quê? Mulher aproveita a vida depois que fica viúva! Eu fui casada por 47 anos, não quero mais saber de homem mandando na minha vida, não! Primeiro era meu pai, que me reprimia porque eu era mulher; depois, casei com um militar, que não deixava eu fazer nada, porque era mulher dele! Nem dançar eu podia, porque o cretino era todo travado e ele não permitia que outro homem dançasse comigo. Sou viúva há dois anos, e agora que estou vivendo a vida que eu sempre quis! E ele me deixou uma boa pensão! Então, não tenha dó desse dinheiro, não… quero usar isso para recuperar um pouco do tempo perdido. Agora que posso finalmente usufruir do dinheiro dele, vou fazer as coisas que sempre quis e nunca pude, porque a vida inteira fui oprimida!

E foi assim que um jovem professor de dança teve a maior aula de empoderamento feminino de toda a sua vida, e entendeu que nem sempre os objetivos da vida de uma mulher giram em torno de conseguir um casamento; algumas só querem dançar!

Sobre o autor

Patrícia Librenz

Mãe de dois gatos, um autista e outro que pensa que é cachorro. Casou com um veterinário, na esperança de um dia terem uns 837 animais. Gaúcha no sotaque, pero no mucho nos costumes. Radicada em Foz do Iguaçu desde 2008, já fez mais de 30 mudanças na vida. Revisora de textos compulsiva, apaixonada por dicionários. A louca do vermelho. A chata que não gosta de cerveja. A esquisita que não assiste a séries. Dona da gargalhada mais escandalosa do Sul do Mundo. Mestra em Literatura Comparada, é fã de Machado e Borges, mas ignorante de Clarice Lispector e intolerante a Paulo Coelho. Não necessariamente nessa ordem.