Lucas lembra muito bem como tudo começou. Dirigia seu Honda Fit distraído pela rodovia, com o som de jazz tomando conta do carro e a paisagem se descortinando pela janela, quando, na saída de uma cidade, observou aquela moça loira e curvilínea parada em um ponto de ônibus. Os olhos verdes da mulher encontraram os dele e, vap!, aconteceu pela primeira vez: Lucas tinha trocado de corpo!
Na hora, tomou um susto e um tombo – talvez pela inércia da parada abrupta do movimento. Sentiu o calor do sol arder em sua pele, em contraste ao ar-condicionado gelado do carro, e o vento a balançar seu agora longo cabelo loiro. Olhou para o lado e viu seu próprio Honda Fit indo embora, levando com ele seu corpo original e o som do trompete de Miles Davis. No reflexo do vidro do ponto de ônibus, não se reconheceu: agora era uma mulher atraente.
Aqueles primeiros minutos foram os mais difíceis, mas não duraram muito. Ainda confuso (a) e de joelhos no chão percebeu um caminhão passando pela estrada, identificou a meia distância o rosto do caminhoneiro, se concentrou e, vap!, assumiu o volante e quase causou um acidente. Suas curvas se trocaram por dobras e o cheiro de lavanda do cabelo pela fumaça do cigarro.
Pressionou forte as pálpebras com os nós dos dedos, esfregou a sua nova e vistosa barba, concentrou-se no volante e focou na estrada. Precisava encontrar o Honda Fit, mas, aqui entre nós, a perseguição não merece mais que um breve resumo: o carro parou em um posto de conveniência e o caminhão passou batido. Lucas, agora Jorge, nunca mais encontrou seu corpo original, que foi assumido pela mente de uma mulher loira que passou a gostar de jazz e que, por sua vez, hoje é um ex-caminhoneiro muito atraente e confuso, ainda de joelhos em uma parada de ônibus.
Com o tempo, Lucas conseguiu entender e controlar seu poder. Basta olhar fixo nos olhos da pessoa e, desde que ela devolva o olhar, vap!, ele consegue assumir aquele corpo. Não lhe passa perguntar quem fica com o outro corpo naquela troca forçada.
Para Lucas, o que conta é a experiência de viver várias histórias. Pela manhã, é um ricaço curtindo a piscina da cobertura do hotel com a esposa. À tarde, um pastor celebrando um casamento e, ao final do dia, é uma moça negra trocando olhares sedutores com aquele jovem rapaz de barba ruiva em um bar badalado.
A cada dia, ele assume uma ou mais vidas. Velho, criança, mulata, senhora, trans, punk ou atendente do Starbucks. Eventualmente, ele vai encontrar a vida perfeita e sossegar. Seus dias de “troca” terão acabado.
Até que isso aconteça, Lucas tem criado um mundo bastante confuso.