Canto dos contos

Último suspiro

Já no leito de morte, Dona Leocádia resolveu abrir o coração. Chamou o marido e lhe fez uma confissão.

Já no leito de morte, Dona Leocádia resolveu abrir o coração. Não levaria para a vida eterna os erros e arrependimentos desta terrena. Chamou o marido, Seu Agenor, e começou a falar.

“Nunca fui santa”, confessou diante do olhar atônito do companheiro dos últimos 45 anos, mesmo tempo em que se dedicara à igreja do bairro, como ministra e catequista. Tudo o que Léo era é santa. Ao menos até aquele dia.

“Não quero que você tenha uma visão idealizada de mim…”, continuou com certa dificuldade, “eu te traí… cof-cof!”, respirou, já no estertor da morte. “…várias vezes…”

A máquina soou um silvo contínuo. Uma linha reta riscou o monitor. Enfermeiras entraram na sala e tiraram Agenor, aos prantos, do quarto.

A senhora foi levada à UTI e, talvez os anos de ministério expliquem, conseguiu ser reanimada milagrosamente. Os médicos não conseguiram explicar a rápida melhora e a resposta imediata à terapia, aos remédios e tudo mais. Quinze dias depois de quase ir desta, Dona Leocádia estava novamente em casa.

Seu Agenor a esperava com um vaso de begônias amarelas nas mãos. E um punhado de perguntas na cabeça.

Sobre o autor

Murilo Alves Pereira

Jornalista científico de formação, observador do cotidiano por vocação, acredita que as histórias acontecem o tempo todo e só esperam ser contadas. Gosta de imaginar um mundo mais literal, onde, por exemplo, Lady Insônia, com sua rouca voz de fumante, não o deixa dormir. E, enquanto não dorme, cria contos tendo como inspirações uma loira e um gato com os quais divide um barraco. Viajante, apreciador de cervejas, divulgador de ciência e colecionador de águas, tem amor por madeiras, plantas e mapas e uma implicância especial pelo uso incorreto de “literalmente”.

Comente! É grátis!