Texto enviado pelo leitor Josué Brito Santana
São três e meia da manhã e meu marido ainda não pegou no sono. De uns meses para cá, toda noite é esse tormento. Vira na cama de um lado para o outro e não abre a boca para me dizer nada. Eu sei que ele não está bem.
O lampião está apagado, mas ainda é possível ver o clarão da lua pelas frestas das telhas e da porta. Aqui pertinho, mora o seu amigo, Nel Gaivota, companheiro de pescaria. Jamais vi amizade tão verdadeira.
A sua esposa é minha comadre. Eles têm oito filhos, pois ainda não ligou, e nós temos quatro. A vida segue aqui na aldeia, sempre nessa marola, sobrevivendo do mar, nessa lida arriscada.
Tenho muito orgulho do meu marido, principalmente quando retorna para mim trazendo as suas colheitas. Nem suspeitam que ficamos aqui com o coração nas mãos só de pensar nos perigos, afinal, todos sabem das histórias de tragédias de pescadores.
Jamais tentei me colocar entre o mar e eles porque sei que a camaradagem e a cumplicidade deles é difícil explicar. Chegam sempre exaustos e felizes, com pressa de venderem a carga ao primeiro atravessador esperto que aparece.
Mas, nestes dias sombrios, os amigos não têm ido ao mar e isto tem causado um comportamento muito estranho aos dois. Do lado da parede da cama, finjo dormir e posso até tocar nos pensamentos do meu marido, mas não quero que saiba que também estou sofrendo. Ultimamente, nem ouço mais o seu assovio costumeiro. Se eu tivesse dinheiro, a minha sina seria outra!
Vejo-o levantar, cabisbaixo, passa pelo colchão no canto da parede onde estão os nossos quatro filhos embrulhados, para um pouco, em seguida acende o candeeiro na sala e vai até a cozinha, para não acordar a família.
Confere as tralhas da pescaria a rede, o arpão, o canivete, o facão, o alicate e o balde, abre a porta e, naquela escuridão, sai. Vai visitar o seu barco, acho até que se não conseguir mais peixes, o jeito vai ser voltar o negócio, pois não há como pagar as prestações.
Vou até a cozinha e vejo o vulto do meu velho junto ao barco, junto ao grande coqueiro, acho que devem estar conversando. Sinto que eles também não conseguiram dormir: mar, vento, coqueiro, barco e homem numa triste paisagem.
No céu, as estrelas continuam o seu espetáculo, não sei por que, mas acho que elas riem de nós. Sinto saudades dos tempos em que, nessas mesmas condições, a gente fazia amor numa noite como esta até o sol nascer, tendo as estrelas e o barulho do mar de testemunha…
Como éramos grandes, como éramos fortes e felizes, mas hoje só restou esse silêncio e esse barulho das águas. Daqui a pouco os meus moleques estarão na praia e não quero que eles percebam a nossa dor. É uma pena não ter nenhuma novidade, nem uma concha do mar para lhes oferecer.
A mais velha já está ficando mocinha e sonha em ser advogada. Se Deus existe, ele há de ter compaixão de nós, só ele sabe como eu gostaria que a vida do mar fosse uma diversão, e não um destino.
Vejo que o meu marido está voltando para casa… não, ele está passando pela casa de Nel. Acendo o fogo do fogão de lenha, coloco água para ferver na intenção de chamá-lo, como de costume, para vir tomar o café.
O café está pronto. Ele vem mais depressa do que de costume. Tenho um mau pressentimento.
Ontem mesmo, comadre Antônia me falou que o seu marido anda muito esquisito. Olho no fundo dos seus olhos e vejo muita tristeza, ele apenas diz: ”Deus sabe o que faz!”.
O gato começa a despertar e vem me roçar as pernas como sempre faz quando quer um pouco de vísceras de peixe. Deu azar. Não houve assovio do amigo avisando a hora de sair.
Vou até a casa dele e comadre Antonia é só choro. Choro de desespero. Não haverá mais pescaria e eu não sei como o meu velho vai aguentar.
Me lembrou o universo de Jorge Amado. Só a arte e a literatura em espacial, pode nos proporcionar esse mergulho no íntimo do outro.
Comovente e poético! Parabéns!