O bar cuja dona você conhecerá a seguir já foi palco para outras histórias. Confira em “Conto de bar“.
Dolores desembarcou em Santos em 1935, o Salazarismo expulsara seus pais da terrinha. Esta família veio conhecer o desgosto além-mar, não poderiam esperar pelos cravos. Logo que chegaram ao Brasil, o pai de Doca foi tentar vida no cu do mundo. Foi abrir uma sapataria naquele lugar. O Português nem ao menos se perguntou: “Será que usam sapato no cu do mundo?”.
Após dois anos de prejuízo, e com a angústia de não ter notícias de sua terra – acredite, chegava pouca informação no cu do mundo -, o Português se afeiçoou à cachaça e, você sabe, europeus são frouxos. Morria de cirrose antes de ver sua filha completar 12 anos. Imagina a cena, parceiro: uma mãe solteira, estrangeira, com filha entrando na adolescência, numa época que mulher não valia nada, no cu do mundo? As chances eram mínimas.
Para não passar fome, a mãe de Doca sujeitou-se às vontades de um lavrador que lhe ofereceu proteção e um teto para ela e a filha. Apanhou e foi estuprada quase diariamente nos três anos que viveu com esse sujeito. Doca via tudo.
Em setembro de 1943, Doca viu o lavrador chegar no barraco, bêbado como um porco. Com um cabo de enxada, ele tirou de Doca o último vínculo que tinha com ela mesma. Doca não teve forças sequer para chorar. Duas noites depois, estava sendo estuprada no lugar da mãe. Estéril de nascença, sempre agradeceu aos céus por essa dádiva. Aquele verme viveu por mais 20 anos até morrer a facadas em uma briga no bar do Lineu. Que grande dia.
Após a morte de seu algoz, Doca, que a essa altura já era Dona Doca (mais pela aparência do que pela idade em si), se sentiu livre e decidiu romper as pregas do cu do mundo e veio tentar a vida na cidade. O lavrador tinha um pedaço de terra que Dolores vendeu a preço de banana pro delegado.
Semianalfabeta, chegou à cidade grande sem conhecer ninguém. Não era bonita, não conseguiria dinheiro desempenhando a profissão que aprendeu como escrava no barraco do lavrador. Se instalou em um cortiço no centro da cidade e, com o pouco que sobrara da venda da terra, invadiu uma garagem em frente ao cortiço, e em 1979 inaugurava o bar da dona Doca. Só vendia cachaça e torresmo. Sucesso garantido.
No verão de 83, o bar da Dona Doca vivia seu auge. Uma obra faraônica na rua do correio trouxe centenas de operários para região – e, com eles, as putas que compunham, junto com os velhos bêbados, a cadeia alimentar da região. Mesmo prosperando, Doca nunca foi feliz. Essa sensação lhe foi tirada ao embarcar para o Novo Mundo, fugindo do Estado Novo.
Era Quarta-Feira de Cinzas, o bairro era silencioso e Doca resolveu abrir o bar mais tarde. Perto das 11h da manhã, levantou a porta de ferro do Bar da Dona Doca. O primeiro alcoólatra se sentava à mesa, aquela mais próxima à porta de ferro, ainda enquanto ela tirava as moscas dos torresmos de terça-feira de carnaval para vendê-los pela metade do preço. Quando começassem a feder, ela os venderia por 1/3 do valor original.
Dona Doca era uma mulher ruim. Tinha ódio por tudo e por todos. Por isso, abriu um bar: pra compartilhar o ódio em forma de álcool.
Apenas após fazer todo seu ritual de espantar moscas e limpar com pano úmido os copos sujos (só precisa tirar a baba, a cachaça esteriliza o resto), é que Dona Doca foi dar atenção ao seu primeiro cliente do dia. Era mais jovem que a maioria dos clientes daquele bar, mas ainda se enquadrava no perfil velho bêbado que era abusado pelas putas, que eram abusadas pelos operários. Hoje não havia as putas, nem os operários.
Ele pediu cachaça com limão. O bar não tinha refrigerador, apenas bebidas quentes eram servidas. O velho virou a dose antes que Dona Doca pudesse voltar seu corpo enorme em direção ao balcão, e esbravejou por mais uma dose. Doca fingiu não ouvir e voltou lentamente para seu banquinho atrás do balcão. Sentou-se e disse: “Venha até aqui e eu te sirvo, velho sujo”.
O velho levantou e foi até o balcão, tomou o litro da mão de Dona Doca, tomou a cachaça no bico. Dona Doca não reagiu. A velha botava medo até no delegado do cu do mundo e ficou imóvel com a ousadia de um velho bêbado. Deveria enfiar aquela garrafa na bunda suja do velho e dar com pau até estourar a garrafa lá dentro.
O velho baixou a porta de ferro, bêbado, e gritou que um dia seria o presidente daquele lugar, e que Dona Doca seria a primeira-dama.
Com uma agilidade incomum para a idade, em um golpe, o velho bêbado pulou o balcão se colocou atrás de uma Dona Doca imóvel. Ela era enorme. Suas tetas pareciam dois grandes sacos de batata, murchos e disformes. O velho, ainda em seu surto de agilidade e força, deitou Dona Doca no balcão de alvenaria do Bar.
Dona Doca continuava imóvel.
O velho abriu com carinho suas pernas, e em uma posição quase ginecológica entrou por baixo da anágua amarelada de Dona Doca, se esquivou de algumas camadas de pelos malcheirosos e a tocou com sua língua. A velha arqueava, babava, urrava de prazer. Ela nunca havia sentido aquilo. Jamais. O velho não fez esforço algum, apenas a tocava com a língua. Já detalhei mais do que gostaria essa cena grotesca, mas a velha estava lá arqueando e babando. Rolou até um squirting, parceiro.
O velho saiu ensopado, a barba pingava, o bar inteiro tinha o mesmo cheiro da barba ensopada do velho. Sopa de Dona Doca.
A velha continuou imóvel. O velho matou a garrafa de cachaça, levantou a porta de ferro e saiu dizendo: “Eu volto pra tomar posse quando for a hora. Desejo do fundo do coração que já não esteja mais viva, minha doce Dolores”.
A velha Dona Doca garante que essa história é verdade. Ela contava isso para toda puta nova que aparecia. Dizia ser obrigação daquelas moças que todo velho bêbado aprendesse a usar a língua. O velho nunca voltou, pelo menos enquanto ela estava lá, e até sua morte sonhou com aquela língua cinza e áspera do velho naquela Quarta-Feira de Cinzas.