Divã-neando

O peso do algodão

Escrito por Juliana Britto

É possível encontrar motivos e formas de ser leve em meio ao caos que nos rodeia?

Acordei hoje pensando em escrever algo leve, afinal a vida anda muito dura e é preciso buscar mecanismos de fuga. Mas, fugir para onde? Por toda a volta desse país distópico há dor e angústia. Dormir é dar uma pausa, quando os pesadelos deixam, quando o relógio cruel não nos lembra com precipitação que é hora de marchar. Ops! Por que será que escolhi a palavra marchar?! Talvez seja meu lado profético entrando em ação. Como de costume, não dormi bem.

Voltemos à leveza. O que me faz indagar com muita seriedade: “O que é mais pesado: um quilo de algodão ou um quilo de chumbo?” Pergunta sem pé nem cabeça, confesso. Totalmente descabida em uma hora como essa em que começo a escutar o som das primeiras conversas dos passarinhos lá fora. Ao ouvir seus cantos matinais, gosto de imaginar que estão conversando. São livres e conversam. Sobre o que falam os passarinhos? Por certo não se farão perguntas tolas como essa, ou quem sabe, metafísicas como essa: o que pesa mais: um quilo de algodão ou um quilo de chumbo?

Quando criança, gostávamos de brincar com esse tipo de questão, gastar o tempo largo da infância em imaginar, o que para nós, adultos, parece absurdo e coisa sem utilidade. Mas, pense bem: como são importantes as perguntas das crianças! O mundo ainda não está pronto para elas, é preciso descobrir como as coisas funcionam, entender porque a água faz um redemoinho no ralo da pia, ou de onde vêm os bebês; maravilhar-se com o quentinho do algodão doce derretendo, verdadeiras nuvens de alegria a lambuzar mãos e boca.

Sempre tive medo de algodão doce. A temperatura que ele adquire na boca e seu poder de derreter e desaparecer assim que entra em contato com o úmido da língua e do céu da boca me assustavam como um enigma insondável. É que sempre fui medrosa e vivia a imaginar o que havia no lado obscuro da Lua. Hoje, tento buscar a leveza nas crianças e seu encantamento com o mundo e logo dou de cara com um adulto estressado esmagando a alegria da infância, reduzindo tudo a utilitarismos, sem paciência para responder e conversar com os pequenos.

Adoro fazer perguntas para crianças, elas me lembram da menina que fui. Então, imagino que estou conversando comigo, como se tivesse sido transportada por uma máquina do tempo. Não me mando calar a boca e deixar os adultos descansarem, não ralho comigo pelos joelhos sujos e pelos pés descalços, ou por dormir até tarde; ensino a mim mesma a andar de bicicleta, a nadar, a não temer a chuva e os trovões.

É bom ter crianças por perto, sobretudo, quando as nossas já cresceram e nos esquecemos das dores de ouvido, das febres de madrugada, das manhas para comer, do choro para não ir à escola, da saudade e culpa que sentimos ao deixá-las para ir trabalhar ou fazer uma viagem. Gozar da alegria da companhia delas sem ter o trabalho que elas demandam. Não pelo trabalho em si, mas pelo peso que carregamos de não sermos como nossos pais.

Cada geração tem que superar seus velhos, corrigir seus erros, conseguir os reinos que eles não conquistaram. Se eles foram maravilhosos, o peso ainda é maior: é preciso ser melhor e superá-los, ainda que isso nos esmague a cada gesto indefeso de nossos filhos. Por isso, chegamos a esse estado de carcereiros de nós mesmos, acorrentados com pesados grilhões, sempre a cumprir uma pena, real ou imaginária, pelo que não somos, pelo que não temos e precisamos alcançar para sermos alguém. Tudo bem não ser ninguém. Tudo bem ser comum e ser possível. Tudo bem falhar. Tudo bem ser diferente. Tudo bem chorar.

Só por hoje não quero pensar no nosso desejo doentio de esmagar os outros para que possamos ser, é um peso asfixiante demais. Por isso, não lerei as manchetes. Hoje quero estar leve.

Enquanto dirijo para o trabalho, perdida no caos do trânsito, ou olho pela janela do ônibus, entre um cochilo e a vigília para não ser assaltada, com a bolsa bem presa entre os braços, me pergunto: O que pesa mais: um quilo de algodão ou um quilo de chumbo?

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Juliana Britto

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