Correspondência

Escrever para sobreviver

Escrito por Mayara Godoy

O hábito de escrever está no meu DNA. E hoje vocês vão entender um pouquinho mais por quê.

Dia desses, estava me sentindo absurdamente angustiada e triste – como tem sido bem comum durante esse isolamento. As notícias na TV são terríveis. Os comentários das pessoas na internet são piores ainda. Ver a galera desrespeitando totalmente o isolamento pelos motivos mais fúteis me joga ainda mais pra baixo na escala de “esperança na humanidade”.

De repente, abro o WhatsApp e me deparo com uma mensagem do meu pai. Essa foi uma das coisas mais inusitadas dos últimos tempos, já que meu pai nunca usou WhatsApp (ele é absolutamente não adepto das tecnologias digitais). A mensagem consistia em quatro fotos de um caderno rabiscado.

Antes de prosseguir na história, um pouco de contexto

Eu aprendi a ler e escrever com quatro anos de idade. Naquela ocasião, meus pais haviam me matriculado na escola, mas eu não ficava lá de jeito nenhum. Chorava, gritava, não me adaptava, e meus pais, então, resolveram me tirar da escola e deixar para me matricular novamente no ano seguinte, acreditando que, sendo um pouco maior, eu me adaptaria melhor. Mas, meu pai sentiu-se muito apreensivo de que eu pudesse ficar “atrasada” quando retornasse, e então resolveu começar a me alfabetizar em casa.

Naquele ano em que eu me recusei a ir para a escola, meu pai começou a comprar vários livrinhos e caderninhos para me ensinar o beabá. Diariamente, praticávamos leitura e escrita. E, no ano seguinte, com cinco anos, quando voltei à escola, eu já sabia o básico e consegui não apenas acompanhar a turma, como também estava à frente dos meus colegas – e, por isso, a coordenadora pedagógica achou por bem me adiantar um ano.

Mas, a dedicação do meu pai em me apresentar à escrita e à leitura não se encerrou aí. Ele continuou, com o passar dos anos, me incentivando e praticando comigo. Nossa diversão era ir à banca de jornal e comprar um gibi para lermos juntos. Conforme eu fui crescendo, não raro ele me presenteava com um livro em vez de um brinquedo.

Coincidentemente ou não, me tornei jornalista, blogueira, cronista amadora, uma insaciável escritora de coisas banais em qualquer rede social que você puder imaginar. Eu simplesmente existo através dos meus textos e não consigo me imaginar vivendo sem me expressar por escrito.

Meu pai, além de ter me incentivado a ler e a escrever desde sempre, também cultiva seu próprio hábito de escrever. Ele tem um caderninho sempre à mão, onde anota seus pensamentos, ideias, escreve poesias e se arrisca a compor letras de músicas. Mas, ao contrário de mim, ele o faz de forma muito solitária, não publica, não divulga, não mostra para muita gente. Porém, neste dia da mensagem era um desses textos que ele me enviava.

Voltemos à mensagem do WhatsApp

A foto estava meio tremida, então eu não conseguia ler direito. Perguntei se era uma música, e ele respondeu: “Crônica“. Imediatamente, me emocionei – eu ando meio à flor da pele com toda essa situação, então vocês hão de entender. Pedi que ele gravasse o texto em áudio para mim, pois a leitura na foto estava um pouco difícil. Ao que ele prontamente atendeu, eu decidi: “vou publicar este texto no Crônicas”.

Continuamos conversando por WhatsApp – não muito, pois ele tem bastante dificuldade em digitar no celular – e aquilo foi a melhor coisa que poderia acontecer no meu dia. Alguns dias depois, retomamos o assunto por mensagem, e eu avisei a ele que iria publicar o texto, e que tinha gostado bastante. Uma das coisas que ele me disse, foi: “Eu só quero espantar os meus medos, e não profanar”.

Naquele momento, apesar da distância física, me senti emocionalmente muito próxima dele novamente – nós sempre tivemos uma conexão muito forte, mas isso é papo para outro texto – e eu lhe disse: “Tamo junto, pai. Escrever é a minha terapia”.

É muito louco pensar que, por mais que não estejamos nos vendo, nem nos falando muito – pois tanto eu quanto ele odiamos telefone -, o que nos conecta continua sendo a escrita. Neste momento, eu consigo até visualizá-lo sentado na mesa da churrasqueira, com a televisão ligada, seu cigarro, seu copinho de cachaça com gelo, seu caderninho e uma caneta, onde, como ele mesmo me disse, ele registra seus medos e esperanças.

Enquanto isso, eu, numa cena muito semelhante, com minha cuia de tererê do lado, também escrevo meus medos e esperanças – mas, sentada na sala, com o meu laptop. E sei que, tanto para ele quanto para mim, à caneta ou em uma plataforma digital, ambos estamos nos refugiando no hábito de escrever como estratégia para sobreviver.

Se tudo der certo, há de funcionar.

P.S.: O texto do meu pai será publicado esta semana no Crônicas. Prestigiem.

Sobre o autor

Mayara Godoy

Palestrante de boteco. Internauta estressada. Blogueira frustrada. Sarcástica compulsiva. Corintiana (maloqueira) sofredora. Capricorniana com ascendente em Murphy. Síndrome de Professor Pasquale. Paciente como o Seo Saraiva. Estudiosa de cultura inútil. Internet junkie. Uma lady, só que não. Boca-suja incorrigível. Colunista de opiniões aleatórias. Especialista em nada com coisa nenhuma.

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