Desacato

Já pagou sua língua hoje?

Escrito por Leitor / Leitora

Neste texto de leitor, você vai entender, com exemplos e tudo, o que significa “pagar a língua”.

Texto enviado pelo leitor Renato dos Anjos

Pagar língua: Aqui em Minas, quando alguém faz algo que dizia que jamais iria fazer, ou quando acontece alguma situação da qual a pessoa que é vítima tinha certo preconceito, dizemos que essa pessoa pagou língua.

Vou dar um exemplo clássico daqui dessas bandas do interior de Minas Gerais. Cidade pequena, beatas de plantão fazendo o trabalho da rádio, que falta na cidade. Eis que Flávia, jovem de 15 anos filha da Dona Joana e do Seu Antônio, aparece grávida do namorado. Aí o caos está estabelecido! Dona Raimunda, líder não aclamada e impositiva do grupo de beatas coloca todas as outras em estado de alerta e vem com suas previsões apocalípticas. Diz que nos tempos dela não era assim, que o mundo está mesmo acabando e várias outras irrelevâncias que logo se espalham naquela cidadezinha de 5 mil habitantes.

Seu Antônio e Dona Joana, devotos de Nossa Senhora das Dores, já não podem ir fazer suas rezas e pedidos na igreja, pois se sentem envergonhados diante dos olhares de desaprovação daquele povo que vê neles exemplo de maus pais que não souberam impor limites a sua filha. Eis que os meses passam, nasce aquele lindo bebê saudável que traz só alegria para os que estão ao seu redor.

Aos poucos, a paz e a monotonia voltam a reinar naquela cidadela, as pessoas se acostumam com o fato, e até visitam o bebê levando algumas lembrancinhas compradas na lojinha que fica ali perto da igreja que fica no meio da pracinha, referenciando o centro do lugar.

De repente outro escândalo:

_ Odete, Odete, abre a janela minha fia… – Chama Dona Carminha do lado de fora com uma grande euforia para contar em primeira mão a grande novidade. – Cê ficou sabendo quem tá de barriga?

_ Não tô sabendo, me conta logo e entra… Ou melhor, entra logo e me conta! – Diz dona Odete com a euforia maior do que a da Dona Carminha.

Dona Carminha mal se assenta e, antes mesmo de oferecer um tradicional cafezinho, a dona Odete já com os olhos arregalados sem dizer nada encara a portadora da novidade, que diz:

_Cê não vai acreditar… a Marina, filha da Raimunda tá grávida! E é daquele moço que vem aí empinar moto na praça nos fins de semana e que fuma droga.

A única coisa que Dona Odete consegue fazer é procurar seu remédio pra pressão, que naquela altura tá em níveis quase insuportáveis por causa do susto. Marina, menina boa e serena com seus 15 anos também tá ali, grávida naquele lugar onde as pessoas não costumam muito usar o Whatsapp, mas ainda estão na era do telefone sem fio, em que os fatos vão tomando novas narrativas a cada ouvido que entra e a cada boca que sai.

A coitada da Marina, que não tinha nada a ver com aquilo tudo, enfrenta tudo pelo simples fato de sua mãe, Dona Raimunda, abominar aquela situação. Concluímos aqui, caro leitor, que tudo isso aconteceu para que Dona Raimunda pagasse língua.

Mas até que tudo isso ainda teve um final feliz, ou pelo menos um meio feliz: depois de mais profecias apocalípticas, condenações e alvoroços, hoje Enzo Gabriel, bebê mais lindo da cidade e com o nome na moda, só trouxe alegrias para Dona Raimunda que, apesar de ter pagado língua nessa situação, ainda espera sem saber pra pagar por diversas outras da qual ainda é vítima das crenças e costumes tradicionais enraizados no seu interior.


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