Amor é prosa Canto dos contos

Insubstituível

Escrito por Guilherme Alves

Algumas coisas na vida não podem ser substituídas. Umas delas é um grande amor.

Janaína conheceu Marcelo de uma forma bastante romântica: trocando um pneu de carro. No caso, do dela. Janaína já havia colocado o triângulo e pegado os equipamentos necessários na mala quando Marcelo encostou e perguntou se ela queria ajuda. Seu primeiro pensamento foi “que audácia desse macho achando que eu não sei trocar pneu”, mas, diante da perspectiva de não precisar sujar as mãos, decidiu aceitar.

O único problema foi que Marcelo era atrapalhado demais – ao ponto de machucar o olho com a chave de roda enquanto tentava desatarrachar uma das porcas. Acabou que Janaína fez a maior parte do trabalho pesado, cabendo a Marcelo tarefas como correr atrás do estepe que saiu rolando quando ele o foi entregar a ela, e catar uma das porcas que ele chutou pra baixo do carro sem querer.

Janaína sentiu que deveria ter ficado muito irritada com aquilo, mas acabou foi achando graça, e até aceitou o convite de Marcelo para um café, durante o qual descobriu que o rapaz era realmente desajeitado, chegando a derramar café quente no próprio colo e a acertar um soco na barriga da garçonete quando se virou para chamá-la sem perceber que ela já estava a seu lado. Mas, por alguma razão, a falta de jeito de Marcelo não incomodava Janaína, que aceitou um segundo encontro, e logo os dois começaram a namorar.

Os amigos de Janaína, evidentemente, achavam que ela estava louca. Chamavam Marcelo de Desastre Ambulante, e mais de uma vez tentaram convencê-la a terminar com ele e arrumar coisa melhor. Ele tinha outras qualidades que compensavam ser tão desastrado, porém, e ela acabou na verdade foi se apaixonando cada vez mais. Os dois se casariam numa linda cerimônia, na qual Marcelo, quando ia colocar a aliança no dedo de Janaína, a deixou cair e chutou pra longe. A única verdadeira preocupação da noiva foi durante a foto ao lado do bolo, pois ela já estava vendo ele derrubá-lo no chão, mas felizmente isso não aconteceu.

Marcelo e Janaína passariam uma vida inteira juntos, com muitos copos quebrados, enfeites derrubados, roupas rasgadas e presentes inutilizados – certa vez, ele comprou uma flor de cristal belíssima para ela, mas, na hora de entregar, sem querer a deixou cair no chão, e, quando foi se levantar da cadeira para pegar, pisou em cima. Apesar de tudo, Janaína jamais se irritou, e até mesmo tentou facilitar a vida do marido, arrumando a casa de forma que houvesse o menor número possível de prováveis acidentes, e fazendo ela mesma as tarefas que considerava mais perigosas, como lavar a louça. Marcelo retribuía sendo um marido maravilhoso, e Janaína sempre ia dormir agradecendo pela sorte que teve na vida.

Certo dia, entretanto, Janaína escorregou no banheiro e quebrou o fêmur. Poderia se recuperar em casa, mas os médicos alertaram que deveria fazer repouso total, ou a cicatrização não seria perfeita. Marcelo garantiu que faria de tudo para que a esposa não precisasse fazer nada, mas, sabendo do jeito peculiar do marido, Janaína gelou. Já estava prevendo que, quando pudesse andar normalmente, tudo na casa seriam cacos e pedaços.

Os dias passavam, porém, e, aparentemente, nada acontecia. Marcelo levava as refeições na cama para ela, a carregava para o banheiro quando ela precisava, a ajudava a tomar banho, chegou a negociar adiantar suas férias para ficar em casa o dia inteiro com a mulher. E, durante todo o tempo em que ele cuidou dela, ela não ouviu um barulho de copo quebrando, um xingamento de topada nos móveis, não notou nada faltando ou destruído quando ele a levava de um cômodo para o outro. Intrigada, Janaína um dia não aguentou e perguntou que milagre foi aquele que fez com que o marido, sempre tão desastrado, agora se mostrasse tão cuidadoso.

Marcelo, então, olhou bem para Janaína e disse: “tudo o que eu já estraguei na vida era substituível. Você não é”.

Sobre o autor

Guilherme Alves

Nascido numa tarde quente de verão no Rio de Janeiro, casado aparentemente desde sempre, apaixonado por idiomas (se pudesse, aprenderia todos). Professor de inglês porque era a única profissão que parecia fazer sentido, blogueiro porque gosta de escrever desde que a Tia Teteca mandava fazer redação. Coleciona DVDs, tem uma pilha de livros que comprou mas ainda não leu maior que uma pessoa (de baixa estatura) e um monte de jogos de tabuleiro que não tem tempo de jogar. Fanático por esportes, mas só para assistir, porque é um pereba em todos eles. Não se pode ter tudo na vida.

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