Relatório de Evidências

Sons, insônia e isolamento

Escrito por Rose Carreiro

Ficar muito tempo em casa faz a gente prestar mais atenção – e também se irritar – com os sons do cotidiano.

Eólico, o vento que circula o meu prédio, me acordou ontem, de novo, às 6h da manhã. Abri as cortinas pra ver a poeira que parecia uma rajada de canela em pó passando pela minha janela com as folhinhas rodopiantes. Xinguei esse espetáculo poético e voltei pra cama. O uivar do vento é só um dos motivos para as minhas olheiras, afinal. 

Há as noites em que os jovens londrinenses se reúnem com falatório, cigarros e cantoria, na falta de um lugar pra ir durante a pandemia, sob a minha janela. E há as noites em que os mendigos dormem na pracinha, discutindo entre si por horas madrugada afora. Os vizinhos do andar de cima andam pelo quarto depois da meia-noite. Às vezes, eu falo alto sozinha, na esperança de que me escutem também, devolvendo o incômodo. Se comparados à vizinha que parecia ter bolas de bilhar caindo pela casa no antigo apartamento, esses nem incomodam tanto.

Quando não são os sons da noite, são outros, os de sempre. A praça aqui reúne outros habitantes: às vezes pombos, bem-te-vis. E ainda tem o trânsito de uma cidade que não parou. Algum alarme desesperado que toca por minutos e é desligado, mas logo volta a berrar. Enquanto digito e tento contar o tempo que o barulho dura, alguém desativa o alarme, mas daqui a pouco ele volta. E há o cantor da costelaria, que todo fim de semana faz uma seleção das mesmas músicas, de Natiruts a Roberto Carlos, interpretadas de forma acústica, com o mesmo ritmo e as mesmas notas no violão. E o couvert é cobrado. 

Eu não gosto de silêncio. Podcasts e música são os meus companheiros de solidão. Mas, às vezes até o Spotify me cansa, então eu deixo só os sons cotidianos desse isolamento fajuto invadirem os meus ouvidos. Eles me moem um pouco o cérebro, me cavam rugas, me afundam os olhos. Os sons e o isolamento. Me obrigam a dormir tarde, me despertam de madrugada, me fazem acordar cedo. Me irritam, e não há nada que possa fazer pra sair disso. Mas, vendo o copo meio cheio, ao menos me permitem escrever sobre eles, ainda que seja pra reclamar.

Sobre o autor

Rose Carreiro

Nascida num 20 de Outubro dos anos 80. Naturalmente petropolitana, com passaporte carioca. Flamenguista pé frio e expert em não se aprofundar em regras esportivas. Fã de Verissimo – o Luis Fernando – e Nelson, o Rodrigues (apesar de tudo). Poser. Pole dancer com as melhores técnicas para ganhar hematomas. Amadora no ofício de cozinhar e fazer encenações cômicas baratas. Profissional na arte de cair nos bueiros da Lei de Murphy.

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