Eram duas ilhas vizinhas, separadas por um mar bravio. Do ponto de maior proximidade entre elas, os moradores de uma das ilhas podiam avistar os da outra, fazer gestos para eles, mas não conversar; isso porque, além de cada ilha falar seu próprio idioma, incompreensível para os habitantes da outra ilha, o mar, como já foi dito, era bravio, e, nesse ponto específico, se chocava com violência contra altíssimos paredões de rocha, presentes somente nesse lado, em ambas as ilhas, fazendo um barulho ensurdecedor.
Fora esse paredão altíssimo, o restante do litoral de cada ilha era composto por praias, baías e enseadas, e na grande maioria delas o mar era calmo o suficiente para a pesca e o banho de mar. Ainda assim, nenhum dos habitantes das ilhas jamais havia visitado sua vizinha, porque, além da distância, era preciso atravessar o trecho de mar bravio, algo que ninguém havia conseguido fazer, tendo sido muitos barcos destruídos e muitas vidas de corajosos nadadores perdidas durante as tentativas.
Um dia, uma das ilhas recebeu um curioso visitante. Ele simplesmente saiu da água, como se tivesse vindo nadando, e caminhou até a praia. Trajava roupas estranhas, não tinha traços comuns aos nascidos nas ilhas, e parecia não ser capaz de falar. Houve quem achasse que ele havia vindo da outra ilha, mas, ao ser levado ao ponto dos paredões, a expressão em seu rosto deu a entender que ele sequer imaginava que havia outra ilha. O homem foi acolhido pela comunidade, que lhe deu novas roupas, lhe tratou bem, e começou com as tentativas de comunicação. Com o tempo, ele aprendeu a se comunicar com gestos, arrumou uma ocupação, e se tornou um membro perfeitamente integrado à comunidade.
Semanas se passaram, até que um grupo que passeava pelo lado de onde dava para ver a outra ilha notou uma movimentação estranha. O homem que saiu do mar foi chamado para ver, mas soltou apenas um longo suspiro, baixou a cabeça e retornou para o interior da ilha. O grupo que ficou lá acompanhando a movimentação logo entendeu do que se tratava: os habitantes da outra ilha iriam tentar construir uma ponte. Não seria a primeira tentativa do tipo, mas, como a distância entre as duas ilhas era maior do que a maior árvore que eles conseguiam encontrar, as tentativas anteriores também jamais haviam sido bem sucedidas. Dessa vez, entretanto, parece que eles usariam novas técnicas, pois estavam construindo coisas que os habitantes da ilha de cá não compreendiam para que serviriam, mas que claramente ajudariam na construção da ponte.
Enquanto a ponte era construída, o forasteiro não quis se aproximar daquele lado. Parecia tomado por uma tristeza infinita, e frequentemente era visto sentado na praia, olhando para o mar, como se quisesse voltar lá pra dentro. Quanto mais a construção da ponte avançava, mais taciturno ele ficava, e, nos últimos dias, quando a ponte finalmente iria ficar pronta, se trancou em sua cabana, não saindo de lá nem mesmo para comer.
Finalmente, chegou o dia em que a ponte seria concluída. Os habitantes da ilha de cá já se aglomeravam, aguardando o tão esperado contato com seus vizinhos. Quando a última parte ficou pronta, e os primeiros habitantes da ilha de lá pisaram no solo de cá, houve uma grande festa. Abraços, música, finalmente aqueles vizinhos, separados durante tantos anos, poderiam se tornar uma única comunidade.
Em meio aos festejos, poucos repararam que o misterioso homem do fundo do mar havia se juntado ao grupo. Ele estava meio afastado, vestindo as roupas que trajava quando chegou, mãos nos bolsos, olhar resignado. De repente, a razão de seu tormento pareceu clara: atravessando a ponte, passando em meio aos habitantes das ilhas que se felicitavam e travavam o tão esperado primeiro contato, surgiu outro homem, parecido com ele, trajado como ele, indo em sua direção.
Todos pararam e observaram os dois homens, curiosos quanto ao que ocorreria. O homem da ilha de cá deu um sorriso com o canto da boca e abriu os braços, como que esperando um abraço do amigo, enquanto o que vinha da da ilha de lá caminhava com passos resolutos em sua direção. No meio do caminho, sacou uma arma e o matou.
E, após matá-lo, antes mesmo que seu corpo tocasse o chão, deu meia-volta, atravessou a ponte, e retornou para a ilha de lá. Os moradores de ambas as ilhas olhavam perplexos, sem compreender o que tinha acabado de acontecer. Ninguém nunca mais o viu.
Hoje, ambas as ilhas são uma única comunidade, ligada por uma bela ponte, reforçada e melhorada ao longo dos anos. Os habitantes vivem felizes e tranquilos, e contam a seus filhos a história de como a ponte foi construída: um casal foi vítima de um naufrágio, com cada um tendo ido parar em uma das ilhas. Sem aguentar ficar longe um do outro, imediatamente inventaram uma forma de construir uma ponte, e convenceram os nativos a ajudá-los. É por isso, inclusive, que a ponte se chama Ponte dos Amores.
Ninguém mais se lembra da história original.
Não há necessidade.
Na vida real o conflito de versões também ocorre, prevalecendo a versão mais escrota, muitas vezes…