Quem falou que não se misturam?

Esporte e política. Algumas dúvidas tomam conta da minha cabeça nos dias atuais. Esporte e política. Por consequência, sociedade. Certas mentiras, contadas mil vezes, podem se fingir de verdade, sem que se tornem uma. Numa dessas, eu me pergunto: quem falou que não se misturam? Quem foi capaz de enganar a tanta gente numa narrativa tão barata quanto essa, que diz que esporte, política e sociedade não se misturam? Quem segue achando que essa lorota merece ser verdade?

Dura e cruel, a realidade esmurra essa narrativa mais do que os raios UV ferem um bêbado em céu de sol a pino durante a ressaca. Desde que o mundo é mundo, e o esporte é esporte, ele é uma forma e uma representação política por si só. Naturalmente, a sociedade se insere nesse meio, sem precisar pedir qualquer tipo de licença. Desde os tempos do “pão e circo” para o povo, isso é verdade. Mudam as arenas, mudam os gladiadores, mudam os leões, e as hienas – a sociedade – permanece sempre no meio dessa relação.

Jesse Owens já dava suas lições silenciosas em 1936, fazendo Hitler corar e espumar de raiva com a velocidade e o vigor negro sobre a suposta supremacia ariana. Ainda que parecesse o contrário, a vitória de Owens não converteria a sociedade de seu país, que seguiria com a questão racial em estado triste e desumano. 

Mais uma vez em chamas, trinta e dois anos mais tarde, os também velozes Tommie Smith e John Carlos venciam na Cidade do México, protestando em punhos cerrados, seriam expulsos da Vila, mas não sem que já tivessem entrado para o histórico rol dos grandes momentos olímpicos da história. A resposta da sociedade foi tímida, mas começava.

Nem sempre para o bem veríamos essa mistura, e caso tenham sentido falta do futebol, Franco e Mussolini trazem com a realidade de Real Madrid e Lazio; a mistura do futebol com política, fazendo jus ao tipo mais simples do uso do nosso tão famoso ópio do povo. Podemos falar sobre o contexto da criação do Campeonato Brasileiro, do uso político do sucesso da Seleção de 70 e podemos lembrar também da Democracia Corintiana. Incendiar ou inebriar a sociedade são parte do jogo entre o esporte e a política, que fazem papel de rocha e mar, tendo a sociedade como marisco.

Poderíamos visitar as Olimpíadas de Moscou, amplamente boicotadas, em 1980. Nem as lágrimas de crocodilo do ursinho Misha foram capazes de tapar a realidade política e social reprovável do país que foi justamente boicotado. 

Depois de inúmeros exemplos, que só aumentariam caso quiséssemos engordar a lista, chegamos a Colin Kaepernick, que, em protesto quase solitário na NFL, se tornou sinônimo de problemas, terminando injustamente desempregado. Claro que podemos nos lembrar do silêncio ensurdecedor de alguns nomes ao longo do tempo, como o próprio Michael Jordan. Hoje, o próprio “Air” Jordan se envolve, ainda que de modo um pouco tímido.

George Floyd, Jacob Blake e o movimento Black Lives Matter impõem nova reflexão ao esporte e ao mundo como um todo. Louis Hamilton, cada vez mais politicamente engajado deu o tom na mais do que caucasiana Formula 1. No epicentro de tudo, atletas de ponta, negros ou não, lutam por voz e consciência, enquanto a maioria dos nossos jogadores e atletas nacionais se calam. 

Negros  maravilhosos – como diria Luís Roberto – e voadores da NBA provam que o que está na bolha é apenas o jogo e colocam o entretenimento como um prêmio a ser conquistado por sociedades minimamente civilizadas. Que o público médio que assiste ao espetáculo entenda de uma vez por todas que quem mais faz sucesso no esporte tem cor, sim. E não são as cores das camisas que nós torcemos. 

Misturemos esporte e política e sejamos melhores como sociedade. No jogo injusto do esporte, nem sempre aqueles que se levantam contra os absurdos da sociedade saem vencedores. Na semana em que Chadwick Boseman morre após ser imortal com Marshall e Pantera Negra, chegou a hora de vermos esse jogo virar. Já estamos perdendo de goleada.