Divã-neando

Tempo livre

Escrito por Leandro Duarte

O que fazer quando finalmente temos aquele tempo livre que tanto almejávamos?

Há quanto tempo estamos em 2020?

Estou às vésperas de completar um ano quarentenado. Tenho o enorme privilégio de conseguir exercer plenamente minha atividade profissional, no conforto do lar. Não só mantive meu emprego, como pude trabalhar ainda mais nesse período.

Antes do apocalipse, gastava em média 4 horas do meu dia apenas no deslocamento entre minha casa e a firma – horas, estas, que sempre quis usar pra estudar, pra ler livros bacanas, mas que invariavelmente serviam para dormir e reclamar do trânsito, e eu fazia isso muito bem. No banco do ônibus fretado, eu podia remoer diariamente o ódio, meus medos e frustrações, entre buzinas, semáforos, e aquela porra daquele ar condicionado, frio demais nos dias frios, quente demais quando se fazia necessário. Que saudade de reclamar do ar condicionado.

De posse dessas quatro horas pra fazer a porra que eu quisesse fazer, passei por inúmeras fases. No início da quarentena, tínhamos aquelas lindas tardes instagramáveis, de céus coloridos, e vizinhos na varanda. Nesse tempo eu bebia e torcia pro mundo não acabar. Triste ilusão.

Depois dos céus coloridos, aquelas horas começaram a passar cada dia mais devagar. Bebi pra caralho, tomei muito café, internet e outras drogas menos nocivas ocupavam aquelas intermináveis horas nos finais de tarde. Prometi me exercitar, estudar, ler… Toda aquela ladainha das horas no ônibus. E assim como nas horas de traslado, remoí o pior e o melhor de mim. Fracassei miseravelmente nessa missão de ter tempo livre. Questionei meus valores, emburreci, entristeci. Se o amargo é o sabor da maturidade, envelheci anos em 2020.

Tô cansado desse tempo livre, preciso ocupar a cabeça com algo mais denso que fumaça – e não me reconheço escrevendo isso.

Manja aquela máxima de que cabeça vazia seria a oficina do Diabo? É mentira! Eu teria construído coisas incríveis nessa oficina, e no máximo consertei a torneira da cozinha e troquei algumas maçanetas.

Tô com tempo livre e isso é péssimo. Não, obviamente eu não queria trabalhar mais, eu queria este tempo livre associado com a cabeça livre. Livre desse medo de perder quem amo pra um vírus, livre dessa dor estranha na boca do estômago, livre do cenário político em que estamos mergulhados. Queria esse tempo livre pra ser livre.

Tô com tempo livre e, pra buscar uma saída que o preencha, tô com tempo livre e sem vontade nenhuma.

Tô com tempo livre demais.

Mas, se você ajudou a eleger esse verme que prolonga essa agonia, sem tempo, irmão. Vai se foder, arrombado.

Sobre o autor

Leandro Duarte

Leandro, 33 anos, ganha a vida em projetos e TI, talvez por isso sem a menor paciência para toda essa bobagem nerd e cultura pop. Em resumo, inadequado. Grande demais para a poltrona do ônibus de todos os dias.
Pequeno demais para sorrir de tudo. Velho demais para um banho de chuva; muito novo para temer o resfriado. Direto demais para a palavra escrita, e de menos para se fazer compreender. Humano demais para viver de tecnologia. Humano de menos para largar tudo. Comunista demais para os dias de hoje. Comunista de menos para o que é preciso ser feito.
Mesmo inadequado, segue peleando. Como era de se esperar, falhando miseravelmente.

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