Cantinho da Leitura

Brasil: uma releitura d’O Alienista

Escrito por Patrícia Librenz

Alguns imortais da nossa literatura pareciam ter o poder de prever o futuro. Era o caso de Machado de Assis, que séculos depois ainda continua tão atual.

Outro dia me deparei com uma frase no Twitter, atribuída a Nelson Rodrigues (e, pela rápida pesquisa que realizei, parece ser dele mesmo), que dizia o seguinte: “Os idiotas vão tomar conta do mundo; não pela capacidade, mas pela quantidade. Eles são muitos”. Essa capacidade de análise profunda da sociedade é uma característica que sempre me intriga muito nos escritores mais consagrados. Machado de Assis, mesmo, foi quase um profeta!

Se O Alienista, por exemplo, for lido hoje, funciona perfeitamente como uma metáfora do cenário político atual. Para quem não conhece a história, vou até dar uma palhinha: 

O Alienista narra uma história protagonizada por um médico de nome Simão Bacamarte. Mas não se tratava de “qualquer médico”, Bacamarte “era filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas” – ele não era pouca bosta, não! Desse modo, o Dr. Simão Bacamarte, aquele que detinha o conhecimento científico, assume um status de superioridade e torna-se um cidadão “acima de qualquer suspeita”. Portanto, possuía autoridade, respeito e legitimidade para cometer as maiores atrocidades sem sofrer nenhuma punição ou qualquer tipo de questionamento.

O célebre médico instala-se na Vila de Itaguaí e, com apoio político, funda um manicômio que recebe o nome de “Casa Verde”. Esse médico tinha uma ideia ousada: descobrir a causa da loucura e eliminar de uma vez por todas o problema. Então, o médico-cientista, interessado em compreender os limites entre a loucura e a lucidez, passou a internar na instituição todo e qualquer cidadão que apresentasse qualquer sinal de “esquisitice”.

A princípio, a definição de loucura ia ao encontro da noção trivial, do senso comum mesmo. Ou seja, eram considerados loucos todos aqueles conhecidos como tal. Depois de decidir se dedicar mais aos estudos da loucura, o médico define que “loucos eram todos aqueles que não estavam no perfeito equilíbrio das faculdades mentais”. Como isso, Bacamarte aumentou muito seu raio de ação potencial, e o número de internações atingiu ⅘ da população. Nesse ponto, o médico percebe que havia algo de errado com sua teoria (a maioria não poderia ser louca) e decide invertê-la: a loucura passou a ser o perfeito equilíbrio de todas as faculdades. Então, ele solta todos que estavam no manicômio e encarcera o restante da população que ainda não havia sido internada.

Começa a perceber, contudo, que ninguém era louco (ou perfeitamente equilibrado, conforme sua nova teoria): cada um tinha uma fraqueza, assim, acabava cedendo e se equiparando à maioria, sendo, portanto libertado. Então, a Casa Verde fica vazia novamente. Mas ele não podia crer que todos estariam curados… Foi então que “achou em si os característicos do perfeito equilíbrio mental e moral”. No final da narrativa, sendo o único homem perfeito do mundo (de acordo com a própria teoria), Simão Bacamarte se autoencarcera na Casa Verde, onde morre meses depois. Mas é enterrado com toda a pompa de herói.

Parafraseando a Bela Gil, “você pode substituir o médico por um ministro, por exemplo”. Mas leiam o texto original e usem a imaginação de vocês, pois muitas outras metáforas são passíveis de serem extraídas dessa obra-prima… até porque, existem muitos detalhes e lutas de classes que não cabem nessa síntese.

Machado de Assis publicou essa novela (ou conto longo, ou romance curto – como preferir) em 1882. Ou seja, esse texto foi escrito há 137 anos e permanece atual. Teria o autor uma bola de cristal? Seria essa a verdadeira razão de ele ser conhecido como “o bruxo do Cosme Velho”? 

Sabemos que não se trata de bruxaria. Esses escritores clássicos possuíam uma capacidade de análise dos problemas sociais muito peculiar, imperceptível à maioria das pessoas. E, pelo visto, os tempos mudam, mas o ser humano permanece o mesmo: afinal, continuamos dando poder excessivo às pessoas erradas, cultuando falsos mitos e achando que, devido ao grau de instrução (ou preferência política), algumas pessoas estão acima das leis.

Créditos da Imagem: Conti Outra

Sobre o autor

Patrícia Librenz

Mãe de dois gatos, um autista e outro que pensa que é cachorro. Casou com um veterinário, na esperança de um dia terem uns 837 animais. Gaúcha no sotaque, pero no mucho nos costumes. Radicada em Foz do Iguaçu desde 2008, já fez mais de 30 mudanças na vida. Revisora de textos compulsiva, apaixonada por dicionários. A louca do vermelho. A chata que não gosta de cerveja. A esquisita que não assiste a séries. Dona da gargalhada mais escandalosa do Sul do Mundo. Mestra em Literatura Comparada, é fã de Machado e Borges, mas ignorante de Clarice Lispector e intolerante a Paulo Coelho. Não necessariamente nessa ordem.