Relatório de Evidências

Observatório cotidiano

Escrito por Rose Carreiro

Viver em um pequeno apartamento, de frente para outro prédio residencial, muitas vezes pode ser um fator limitador da liberdade. Mas serve de instrumento para se criar crônicas do cotidiano.

Viver em um pequeno apartamento, de frente para outro prédio residencial, muitas vezes pode ser um fator limitador da liberdade. Perde-se a intimidade ou a luz natural das janelas abertas. Mata-se a curiosidade alheia diante de cortinas escancaradas, ou morrem as plantinhas da casa por falta do sol. É preciso respeitar a moral e os bons costumes, além da lei do silêncio após as 22 horas. E também é de bom tom não expor suas roupas de baixo secando-as no parapeito. Mas serve de instrumento para se criar crônicas do cotidiano, como faço aqui.

Eu, enquanto defensora do ócio observador, e possuidora de uma alma bisbilhoteira curiosa, tenho em minha mente um personagem para cada vizinho do prédio à minha frente. Não são muitos os metros que separam os dois prédios, então é possível analisar bem a decoração, a mobília, os animais domésticos e, é claro, os habitantes de cada apartamento. 

Há, por exemplo, aquelas vizinhas que moram bem de frente pra minha sala, e que têm um cachorro chamado Theo. Mesmo depois de quatro anos morando aqui, elas ainda fingem que não me conhecem na rua, e o Theo sempre tenta me atacar. Ao lado delas, mora o “sozinho”. Ele passa bastante tempo no sofá de sua sala integrada com uma cozinha americana que tem uma parede de pastilhinhas vermelhas, me causando inveja. O “sozinho” tem um gato, e uma estátua de gato numa mesinha que é igual ao bichano (está sempre parada na mesma posição e na mesma mesinha, tenho certeza de que é uma estátua). A TV do “sozinho” está quase sempre na GNews, mas também já esteve sintonizada em algum canal pouco ortodoxo, como já testemunhei.

Tem o meu  “vizinho de quarto” que, toda vez que abro a janela, está na sacada. Deve ter seus 60 e poucos anos, e atesta o seu título de idoso almoçando cedo aos domingos. Como sei disso? Não sei, apenas suponho, já que ele religiosamente se debruça na mureta e palita os dentes por volta da uma da tarde. Também tem os vizinhos “Ném”, com a esposa que chamo de Ném por ter cara de Ném, e o marido que canta Adele na versão sertaneja em véspera de feriado. Sua TV está ligada 24 horas por dia, tenho certeza, e quase sempre no Canal Combate (digo quase sempre, pois também já testemunhei ali a transmissão de cenas picantes). 

Novas vizinhas se mudaram para diante da minha janela da área de serviço. Duas meninas de cabelos coloridos, que imagino serem estudantes de Arte, e que por algum tempo, viveram ali no minimalismo – o que resumia sua sala a cadeiras e mesa de plástico, e um micro-ondas. Agora, elas têm decoração de filmes e uma almofada do Batman. Fazem festinhas no fim de semana, regadas a cerveja e cigarro na sacada. E da minha área de serviço também vejo o senhorzinho que acorda cedo demais e deve ter de tomar os primeiros raios de sol. Me pegou no flagra do nude, pendurando a toalha de banho no varal às 07 da manhã. 

Suponho, talvez pela consciência pesada ou pela maluquice aqui instaurada, que esses vizinhos também tenham suas histórias sobre as minhas janelas. Eu devo ser a vizinha que mexe com o cachorro alheio; a vizinha que acorda tarde no domingo e demora a arrumar a cama; a vizinha que não gosta de Adele na versão sertaneja e toma sol com os pés pra fora da janela da sala; a vizinha do cabelo ruivo (ou a vizinha que lava roupas em horários alternativos no fim de semana); ou a vizinha pelada que toma banho muito cedo. 

Fora do aconchego dos seus lares, raramente encontro um ou outro desses personagens na rua, então minhas histórias são limitadas às janelas indiscretas da vizinhança. Volta e meia, me deparo com alguma novidade em seus apartamentos, e sigo ajustando suas personalidades e reescrevendo seus roteiros.

O exercício da xeretagem observação acaba por me render muitas especulações e boas histórias, que pretendo continuar relatando em fofocas escritos diante de qualquer fato inusitado. Pode ser pura falta do que fazer, excesso de imaginação ou uma dose exagerada de literatura Rodriguiana nas ideias. Só sei que, às vezes, um entretenimento mais interessante que qualquer passatempo televisivo é a novela que a gente pode assistir com o enredo do cotidiano e com os atores da vida real. 

Sobre o autor

Rose Carreiro

Nascida num 20 de Outubro dos anos 80. Naturalmente petropolitana, com passaporte carioca. Flamenguista pé frio e expert em não se aprofundar em regras esportivas. Fã de Verissimo – o Luis Fernando – e Nelson, o Rodrigues (apesar de tudo). Poser. Pole dancer com as melhores técnicas para ganhar hematomas. Amadora no ofício de cozinhar e fazer encenações cômicas baratas. Profissional na arte de cair nos bueiros da Lei de Murphy.