Canto dos contos

O Frio Aço da Faca

Escrito por Guilherme Alves

Que problema poderia haver em passar a noite em uma pequena cidade do interior?

Viajava sozinho de carro. Em dado momento, notei algo errado, um problema mecânico qualquer. Sem mais ninguém na estrada, fiquei com medo de parar no acostamento, e decidi tentar a sorte pegando uma saída. Acabei chegando a uma pequena cidade, da qual jamais havia ouvido falar.

Minha primeira impressão não foi das melhores. Os poucos moradores que vi, todos me olhavam desconfiados. De início, achei que fosse paranoia minha, mas aos poucos me parecia cada vez mais claro que me consideravam um intruso, que não me queriam ali. Encontrei uma oficina mecânica, na qual o rapaz, até muito simpático, disse que poderia fazer o serviço, mas que teria de mandar vir a peça da cidade vizinha, e recomendou que o melhor seria eu tentar chegar até lá.

Infelizmente, uma vez desligado, meu carro não ligou mais. Só me restaria passar a noite na cidade; com sorte, na manhã seguinte, a peça chegaria e meu carro seria reparado. O olhar de tristeza do mecânico ao constatar que eu não poderia partir me chamou a atenção.

Me dirigi ao único hotel disponível, onde fui recebido com a costumeira desconfiança que parecia ser norma naquela cidade. Tive que praticamente convencer a moça da recepção de que não havia outra alternativa, e que, se dependesse de mim, já teria seguido meu caminho. Ela me deu um quarto no último andar, e me recomendou fortemente que não saísse durante a noite. “Em hipótese alguma”, frisou.

Fui me deitar imaginando o que de tão terrível poderia haver em uma pequena cidade do interior à noite – animais selvagens, talvez? Enquanto imaginava, peguei no sono. Um sono agitado, cheio de pesadelos povoados por terríveis criaturas, diferentes de tudo o que eu já havia visto na vida, mas que, em meu âmago, eu sabia que me queriam mal.

Acordei banhado de suor. Era exatamente meia-noite. Ainda sob o efeito dos pesadelos, pensei ouvir, ao longe, uma estranha cantoria. Quis tomar um gole d’água; não havia. Peguei o telefone para chamar a recepção; estava mudo. Decidi descer e ver se havia alguém; lembrei-me da recomendação da moça, mas pensei que, se não saísse pela porta do hotel, não haveria problema.

Ao chegar à recepção, porém, notei que o hotel parecia totalmente deserto – e que a cantoria que pensei ter ouvido do quarto parecia mais alta. Talvez contra meu melhor juízo, decidi seguir seu som, o que me levou até o subsolo do hotel. Lá havia uma espécie de capela, escavada na rocha, mas, em vez de santos, as estátuas representavam as estranhas criaturas de meu sonho. Em uma espécie de rito profano, os moradores da cidade, incluindo o mecânico e a moça do hotel, cantavam sua liturgia.

Paralisado de medo, por um momento pensei ainda estar sonhando. Ao me dar conta de que tudo era real, ficou bastante claro para mim por que ninguém me queria naquela cidade. Temendo por minha vida, comecei a imaginar se seria possível eu voltar ao meu quarto antes que eles se dessem conta de que eu havia descoberto seu segredo.

O frio aço da faca abriu minha garganta e dissipou minhas dúvidas.

Sobre o autor

Guilherme Alves

Nascido numa tarde quente de verão no Rio de Janeiro, casado aparentemente desde sempre, apaixonado por idiomas (se pudesse, aprenderia todos). Professor de inglês porque era a única profissão que parecia fazer sentido, blogueiro porque gosta de escrever desde que a Tia Teteca mandava fazer redação. Coleciona DVDs, tem uma pilha de livros que comprou mas ainda não leu maior que uma pessoa (de baixa estatura) e um monte de jogos de tabuleiro que não tem tempo de jogar. Fanático por esportes, mas só para assistir, porque é um pereba em todos eles. Não se pode ter tudo na vida.

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