Amor é prosa Canto dos contos

Amor à Flor da Pele

Escrito por Guilherme Alves

Sempre há um jeito de se homenagear um grande amor.

Hudson fez sua primeira tatuagem aos 18 anos, e não parou mais. A cada acontecimento que julgava importante em sua vida, fazia mais uma: seu primeiro carro, seu cachorrinho que morreu, um diploma quando se formou na faculdade, um par de chaves para seu primeiro apartamento. Isso sem contar aquelas mais tradicionais, como o escudo do clube do coração, uma taça para comemorar quando tal clube foi campeão, datas de nascimento, símbolos e frases em homenagem aos pais, irmãos, avós. O resultado foi que, aos 25 anos, Hudson já tinha o corpo quase todo tatuado, faltando praticamente apenas o rosto, as solas dos pés e a palma das mãos. E um outro lugar que ele não tinha coragem de tatuar.

Mesmo tendo tantas tatuagens, havia um tema que Hudson jamais havia se interessado em marcar em seu corpo: um amor. Ele havia tido namoradas, casos, romances, alguns que até imaginou que seriam para sempre, mas sua posição em relação a isso era clara: só quando tivesse certeza, aquela certeza absoluta, faria uma tatuagem em homenagem a uma mulher. O problema é que tal certeza não chegava, e o espaço foi acabando. Hudson, entretanto, não se importava, preferia passar a vida sem uma tatuagem em homenagem a uma eventual esposa do que fazer uma tatuagem em homenagem a uma namorada que não foi pra frente e ter de passar a vida se lembrando dela.

Um dia, a opinião de Hudson mudou. Foi o dia em que ele conheceu Orquídea.

Hudson e Orquídea se conheceram acidentalmente, durante um show de rock. A moça cantava a música preferida dele a plenos pulmões, e ele não pôde deixar de achar isso interessante. Se aproximou, flertou com ela, conversaram, beberam juntos, saíram do show juntos. Antes de dar seu telefone, ela lhe permitiu um beijo. Foi só quando ela já estava indo embora que ele se lembrou de perguntar o nome dela.

E aí veio a tal certeza.

Hudson não conseguia pensar que era só coincidência a moça se chamar Orquídea. O desenho da tatuagem surgiu claro em sua mente de tão óbvio, e ele teve de repetir para si mesmo, enquanto voltava para casa, que deveria ir com calma, que a conhecia apenas há algumas horas. Mas não houve jeito, o rapaz já estava irremediavelmente apaixonado por ela.

Hudson e Orquídea começaram a namorar, e o namoro durou longos e felizes anos. E, a cada ano que passava, ele tomava a decisão de que daquele não passava, que ele iria fazer a tal tatuagem em homenagem a ela. Só que ainda havia mais um problema: o lugar. Todos os espaços não-tatuados do corpo de Hudson, com exceção do rosto, das palmas das mãos, das solas dos pés e daquele onde não pegaria bem fazer uma tatuagem em homenagem à namorada, eram pequenos demais para um desenho daquela importância. A orquídea de Orquídea deveria ser grande como o amor que ele sentia por ela, mas já não havia como fazê-la se não fosse por cima de outra.

Isso deixava Hudson triste, uma tristeza que ele não queria revelar a Orquídea. Eles se casaram, tiveram filhos, seus problemas eram aqueles que todos os casais têm, mas, em alguns momentos, Orquídea não conseguia deixar de notar uma certa decepção no semblante do marido. Ela perguntava o que estava acontecendo, ele respondia que era algo sem importância, e ela se sentia impotente por não poder ajudar.

Um dia, tendo certeza de que o marido era infeliz no casamento, ela chorou, e ele decidiu abrir o jogo. Falou de sua frustração por não ter como fazer a tatuagem que queria, pediu até desculpas. Orquídea achou graça, achou fofo, e disse para o marido não se preocupar, que no dia seguinte mesmo teria a solução.

Hudson passaria o dia inteiro encucado. Como assim solução? Que mágica era essa que a mulher faria que permitiria que ele tivesse um espaço para homenageá-la em sua pele? Ao chegar em casa, curioso para perguntar o que ela quis dizer com isso, Hudson encontrou Orquídea sentada no sofá, de roupão, com um largo sorriso no rosto.

Ela se levantou, virou de costas, e baixou o roupão para revelar sua primeira tatuagem.

Um Hudson Hornet Sedan 1953.

Sobre o autor

Guilherme Alves

Nascido numa tarde quente de verão no Rio de Janeiro, casado aparentemente desde sempre, apaixonado por idiomas (se pudesse, aprenderia todos). Professor de inglês porque era a única profissão que parecia fazer sentido, blogueiro porque gosta de escrever desde que a Tia Teteca mandava fazer redação. Coleciona DVDs, tem uma pilha de livros que comprou mas ainda não leu maior que uma pessoa (de baixa estatura) e um monte de jogos de tabuleiro que não tem tempo de jogar. Fanático por esportes, mas só para assistir, porque é um pereba em todos eles. Não se pode ter tudo na vida.