Gabinete do Ódio

Carta à Sociedade Protetora de Vidraças

Escrito por Leandro Duarte

Vivemos num país em que vidas humanas parecem ter menos valor que vidraças e fachadas de prédio.

Venho, por meio desta, solicitar aos Ilustres Senhores da tradicional Sociedade Protetora de Vidraças e Fachadas: Vão todos tomar no cu, bando de arrombado.

Desde muito antes das “violentas” manifestações antirracistas estadunidenses, em função do assassinato racista e brutal de George Floyd, esta distinta instituição já atuava com paixão e luta com fervor para garantir a proteção das belíssimas fachadas e vidraças de propriedade privada, espalhadas por nossas cidades.

Como esquecer os ataques “terroristas” Black Blocs realizados durante as manifestações contra o aumento de passagens no transporte público de 2013? Ataques estes que vitimaram diversas vidraças do bilionário banco cor de laranja nos endereços mais caros de São Paulo. Esses filhos da puta já mostravam suas garras.

Já dizia o primo Preto: em nossas periferias, temos um George Floyd a cada 23 minutos, temos um genocídio em curso, a bala perdida sempre acha alguém e esse alguém na grande maioria das vezes tem a pele preta. O peso da bota do militar não tem permissão para amassar a grama verde do playboy de Alphaville, mas pesa livre, impune e raivosa sobre o pescoço do preto periférico. Mais uma vitória das vidracetes, apelido carinhoso dado aos membros da honrosa instituição à qual me dirijo.

O sangue é vermelho, vermelho é coisa de comunista, o sangue do preto deve ser ainda mais vermelho, por isso tanto esforço em ver esse sangue jorrar.

A vidraça não, a vidraça não é vermelha. A vidraça reflete a cara pálida de seus defensores, reflete o ódio, a arrogância. Reflete o medo de perder privilégios, reflete os sonhos de ser bem sucedido nessa selva, seja como for, por cima de quem for. As vidraças refletem o que esses vermes mais amam, refletem eles próprios e mais nada. A vidraça reluz como o ouro e diamante roubados da África.

É o seguinte, racista: enquanto essa porra continuar assim, enquanto faltar ar pra um irmão, suas vidraças continuarão a quebrar, o Estado vai continuar sendo recebido a bala de AK na favela, muito busão ainda vai pegar fogo, e é só o começo. Tenho fé que em breve as vidraças não se quebrem mais, acredito em uma sociedade em que o povo destrua não mais as fachadas do mercado, mas sim todos os dentes da boca de todo racista, de todo cidadão de bem que repete as falas do vice-presidente. Tenho fé no fogo sagrado do isqueiro que vai acender a fogueira dessa pilha de racista.

Desde já, agradeço pela atenção dispensada.

Sem mais.

Sobre o autor

Leandro Duarte

Leandro, 33 anos, ganha a vida em projetos e TI, talvez por isso sem a menor paciência para toda essa bobagem nerd e cultura pop. Em resumo, inadequado. Grande demais para a poltrona do ônibus de todos os dias.
Pequeno demais para sorrir de tudo. Velho demais para um banho de chuva; muito novo para temer o resfriado. Direto demais para a palavra escrita, e de menos para se fazer compreender. Humano demais para viver de tecnologia. Humano de menos para largar tudo. Comunista demais para os dias de hoje. Comunista de menos para o que é preciso ser feito.
Mesmo inadequado, segue peleando. Como era de se esperar, falhando miseravelmente.

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