Ela acordou cedo, todo dia era igual. Às 4h30 da manhã, na quebrada, só se ouve os cachorros e a criança chorando na rua de cima. Ela tomou seu banho correndo, deixou café pronto pra sua coroa – a tiazinha tá doente e acamada. Desde sempre, foram só as duas contra o mundo. O pai dela nunca mais voltou, nunca fez falta.
Antes das 5h, ela já tava na rua. O sol ainda dormia, mas ela não. Tinha que caminhar meia hora pra pegar o busão. O medo subia junto com ela no escadão do campinho, ele era seu amigo, deixava ela ligada. Ela nasceu e cresceu ali, mas de alguns anos pra cá tava tudo mudado, já não conhecia mais os vizinhos.
Cara fechada e estomago gelado. O busão vai estar chapado, mas lá ela não estaria sozinha. No caminho, ela só pensava em chegar. Os tiozinhos no ponto davam bom dia e olhavam estranho pra ela. Cara fechada, abraçando a bolsa – que alívio!, chegou o ônibus.
Dá um salve pro motora, o cobrador a chama de linda todos os dias. Foda-se, ela só precisa chegar no trampo. Às 6h o sol já tá estralando, o suor corre a espinha. Ela vai correr mais 10 minutos pra pegar o próximo ônibus. Você vê de tudo no centro da cidade. Com o tempo, você aprende a não ver nada.
Segundo busão ainda mais lotado, mas o segundo trecho é mais rápido. Cheio desses bosta que ficam se esfregando pra passar por ela. Cara fechada, abraçando a bolsa, o pensamento lá na coroa – será que ela acordou bem?
No trampo, já cansada antes das 8h. Todo dia, tinha que trabalhar 4 vezes mais para ganhar metade do mérito daqueles playboys que passam metade do dia vendo foto de putaria no celular do lado da máquina de café. Ser melhor que eles já tinha se tornado tarefa fácil, ela é zica no que faz.
Depois de, mentalmente, mandar o chefe tomar no cu varias vezes no dia, bate o ponto e vai pra aula. A faculdade é do outro lado da cidade – era a que dava pra pagar, o importante é estudar. Tá foda com a faculdade, imagina sem. A coroa sempre falava isso quando ela desanimava.
23h. Entre uma pescada e outra, ela se força a ficar atenta. A essa hora existe o alívio e o medo do busão vazio. Cara fechada, abraçando a bolsa.
Quase meia-noite, ela desce do ônibus. A quebrada tá viva, os botecos cheios, os tiozinhos que já perderam tudo, buscando no fundo do copo a resposta pra uma vida de merda. Com os fones de ouvido, ela ignora o que ouve, cara fechada, abraçando a bolsa.
A duas ruas de casa, silêncio na quebrada. Alto, magro, boné preto, cheiro de álcool. Se aproxima dela exalando maldade. Uma lâmina enferrujada e gelada toca suas costas por trás da mochila. O silêncio se mantém. O cachorro da dona Salomé parece saber o que tá acontecendo e late feito doido.
Se vê sendo arrastada pro matagal do lado do campinho. Ela cresceu ali, sua coroa costumava buscar capim-cidreira naquele mato pra esquentar a barriga da menina.
Chegando no mato, ele a empurra. Agarrada na sua bolsa, ela se vira segurando o oitão velho do seu avô – o malandrão se mija de medo. Diz que era brincadeira, pede a Deus pela sua vida. Ela dá dois tiros na cara do verme. Precisa guardar o resto das balas.
Corre pra casa, chegou tremendo, ódio e pavor. O pulso doía com o coice do canhão. Tomou banho, esfregava a bucha como se quisesse arrancar a própria pele.
A sua coroa, acamada, esperava acordada a menina sair do banho. Ela disse que o dia tinha sido ótimo, falou do que aprendeu na aula, deu seu melhor sorriso, beijou a testa da velha e já era mais de 1 da manhã quando se deitou no colchão no chão do lado da cama da sua coroa.
Ninguém queria que essa história acabasse assim, mas podia ter sido muito pior.
Com a realidade que vemos hoje, na quebrada ainda não sonham com igualdade. Vamos lutar com todas as armas, TODAS. Por um futuro mais ameno pras mina.