Canto dos contos

Cidadãos de bem

Escrito por Patrícia Librenz

Um engano aparentemente banal, como esquecer as chaves de casa, pode ter um desfecho fatal.

Eram umas 5h da manhã quando ela foi acordada pelo marido:

_ Amor, vamos! Está na hora.

Só passou uma água no rosto e saiu de pijama mesmo. O caminho para o aeroporto era longo. Chegando lá, despediram-se:

_ Boa prova! Mande mensagem quando chegar.

Sonolenta, ela sentou-se ao volante e voltou dirigindo para casa. Entrou no prédio, manobrou o carro, chamou o elevador. Ela não via a hora de deitar em sua cama e voltar a dormir. Chegando ao oitavo andar, deparou-se com a porta trancada! O marido trancou a porta. Ela não levou suas chaves junto, porque nem se preocuparia em trancar o apartamento naquele horário, sendo que logo iria voltar.

Desceu até a portaria e perguntou se, por algum acaso, a diarista não havia deixado a cópia das chaves na lá na semana anterior. Não havia nada. A diarista, que deveria ter vindo um dia antes, além de não dar nenhuma satisfação, levou consigo as chaves. O porteiro se ofereceu para ligar para um chaveiro de plantão. O chaveiro disse que chegaria só depois das 7h. Não havia outra opção, senão aguardar. Já se passavam das 6h da manhã mesmo; então, ela ficou ali sentada esperando. De pijama.

Quando o chaveiro chegou, foram até o elevador. Ele reparou nos trajes da mulher e perguntou:

_ Ficou trancada pra fora?

_ Sim, meu marido foi viajar… fui levá-lo ao aeroporto, ele trancou o apartamento e acabou ficando com as chaves…

Chegando ao apartamento, o homem destrancou a porta em questão de segundos. Ela foi até o quarto pegar sua bolsa para pagar pelo serviço e ele ficou esperando na sala. Pagou, o rapaz foi embora, ela trancou a casa e pensou: “Finalmente vou poder deitar na minha cama e dormir em paz!”

Quando estava lá, aninhada, bem gostosinho, ouviu um barulho de chave na fechadura da sala e, em seguida, a porta se abrindo. O coração lhe veio à boca. A mulher pensou: “É o chaveiro! Meu deus do céu, por que eu fui contar pra ele que meu marido estava viajando? Agora ele sabe que estou sozinha, não deixou nem sinal de arrombamento e vai fazer sabe lá Deus o que comigo!”.

Por um momento, pensou em trancar-se no quarto enquanto chamava ajuda. Mas seria inútil – o homem era chaveiro. A primeira coisa que lhe ocorreu foi se defender. No cofre, dentro do armário, havia uma arma. Devido à exposição do trabalho, o marido tinha porte. Eram cidadãos de bem, só tinham uma arma em casa para defenderem-se de invasores. Era chegada a hora de fazer jus ao porte de arma. Ela, que aprendeu a manusear a pistola, carregou-a e já deixou engatilhada.

Abriu a porta do quarto devagar para não fazer barulho… o invasor estava na cozinha, ela podia ouvir alguém vasculhando a gaveta dos talheres – procurando por uma faca, possivelmente. Pé por pé, andou até lá. O coração estava a mil… tomada pelo desespero, com a arma em punho e apontando para o alvo, não hesitou nem por um segundo: atirou.

Ela ouviu o barulho do corpo caindo no chão. O tiro e os instintos foram mais rápidos do que seus sentidos – primeiro, atirou; depois, viu. O pânico a cegou. Ainda ofegante, ela ligou para o 193:

_ Eu preciso de uma ambulância, rápido! Acabei de atirar na minha diarista por engano!

Sobre o autor

Patrícia Librenz

Mãe de dois gatos, um autista e outro que pensa que é cachorro. Casou com um veterinário, na esperança de um dia terem uns 837 animais. Gaúcha no sotaque, pero no mucho nos costumes. Radicada em Foz do Iguaçu desde 2008, já fez mais de 30 mudanças na vida. Revisora de textos compulsiva, apaixonada por dicionários. A louca do vermelho. A chata que não gosta de cerveja. A esquisita que não assiste a séries. Dona da gargalhada mais escandalosa do Sul do Mundo. Mestra em Literatura Comparada, é fã de Machado e Borges, mas ignorante de Clarice Lispector e intolerante a Paulo Coelho. Não necessariamente nessa ordem.

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