Canto dos contos

Por uma letra

Uma letra errada pode te atrasar, pode te fazer perder tempo e belas cenas cotidianas. Mas, também pode mudar sua vida.

Saiu aquele dia atrasado do trabalho por conta de uma bobagem. Estava puto. Pegou o carro e entrou naquela avenida que sempre usa para ir ao centro. Um inferno. Aqueles poucos minutos a mais fariam uma baita diferença no trânsito. Cruzou por um chevette amarelo e, em seguida, reparou a moça bonita levando na coleira o boxer gigante. Entrou à esquerda em outra avenida e, de cara, parou atrás da traseira de um caminhão graneleiro estacionado no sinal em frente à Igreja Batista do bairro. Malditos caminhões, bufou, o que fazem dentro da cidade?

Tudo por conta de um errinho em um texto, no trabalho. Recebeu o whats quando estava saindo já com a chave do carro na mão. Teve que ligar o computador novamente, acessar o sistema, corrigir aquela letra a mais e seguir rumo ao centro com alguns minutos de atraso.

Minutos preciosos.

Tivesse saído quando previsto, desceria aquela avenida mais tranquilamente e menos puto. Quase no final da rua, iria reparar uma moça bonita correndo atrás de um cachorro grande, para prender a coleira em seu pescoço. Aquilo o faria girar o pescoço para acompanhar a cena cômica e mal notar um chevette amarelo saindo justo naquela hora da garagem de casa. Ele teria tempo apenas para salvar a frente de seu Honda Fit recém-pintada e entrar em alta velocidade à esquerda em outra avenida.

Não daria tempo, no entanto, para perceber o caminhão.

O motorista vinha dirigindo desde muito cedo aquele dia. Entrara na cidade cansado, reclamando com Deus e o mundo porque, diabos, as obras daquele desvio não terminavam nunca. Na avenida principal, viu a luz do semáforo caminhando lentamente para o vermelho e resolveu acelerar. Talvez por isso, quase não notou aquele Honda Fit entrando de repente em sua frente. Quase. Conseguiu, no reflexo, virar totalmente o volante e, lei da inércia, tombar aquele caminhão imenso e carregado de grãos em cima da calçada.

Era hora do fim do culto de terça-feira e a frente da igreja Batista estava lotada.

Sobre o autor

Murilo Alves Pereira

Jornalista científico de formação, observador do cotidiano por vocação, acredita que as histórias acontecem o tempo todo e só esperam ser contadas. Gosta de imaginar um mundo mais literal, onde, por exemplo, Lady Insônia, com sua rouca voz de fumante, não o deixa dormir. E, enquanto não dorme, cria contos tendo como inspirações uma loira e um gato com os quais divide um barraco. Viajante, apreciador de cervejas, divulgador de ciência e colecionador de águas, tem amor por madeiras, plantas e mapas e uma implicância especial pelo uso incorreto de “literalmente”.

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