Canto dos contos

Variant

Escrito por Patrícia Librenz

Eu estava a aproximadamente quatro minutos do meu destino, mas era impossível sair do lugar. Fios dos postes de luz começaram a arrebentar e a cair no meio da rua, soltando faíscas. As luzes apagaram e a escuridão dominou o bairro. As únicas luzes que iluminavam o local vinham dos raios, que chegaram antes da chuva. Minha bicicleta foi derrubada no chão e eu a vi sendo arrastada para a direção oposta da avenida. Não havia nada que eu pudesse fazer, não a enxerguei por muito mais tempo, pois a visibilidade era muito baixa. Eu só podia ver o que estava a uns três metros dos meus olhos.

Eu moro muito perto do trabalho, apenas 1500 metros, e optei por realizar este trajeto, diariamente, de bicicleta. Poderia fazê-lo a pé, mas com a bike é mais rápido. Em 5 ou 6 minutinhos já chego lá.

Naquele dia, estava nublado, certamente choveria mais tarde, mas como ainda não caía água do céu, subi na magrela e segui meu rumo, pois só uma chuva muito forte é capaz de me fazer deixar minha amiga de duas rodas em casa e chamar um motorista de aplicativo. Minha rotina de deslocamento é sempre igual, vou de dia pela Avenida Gramado, que tem menos movimento, e volto à noite pela Sasdelli, que é mais movimentada.

Mas, a apenas 500 metros de casa, o céu começou a escurecer muito rapidamente. Cerca de um minuto depois, já estava completamente escuro. Anoiteceu às 9h54 da manhã e as luzes da rua acenderam-se. Acelerei o ritmo da pedalada, mas o vento levantou uma cortina de poeira tão forte, que tive que parar. Busquei abrigo no ponto de ônibus. Eu estava a aproximadamente quatro minutos do meu destino, mas era impossível sair do lugar. Fios dos postes de luz começaram a arrebentar e a cair no meio da rua, soltando faíscas. As luzes apagaram e a escuridão dominou o bairro. As únicas luzes que iluminavam o local vinham dos raios, que chegaram antes da chuva. Minha bicicleta foi derrubada no chão e eu a vi sendo arrastada para a direção oposta da avenida. Não havia nada que eu pudesse fazer, não a enxerguei por muito mais tempo, pois a visibilidade era muito baixa. Eu só podia ver o que estava a uns três metros dos meus olhos.

Peguei o meu celular para tentar comunicação com alguém, mas estava sem sinal, no meio da rua, debaixo de uma tempestade, encolhida em um ponto de ônibus. Nunca desejei tanto na vida entrar em um ônibus aqui em Foz do Iguaçu, mas não passava um carro sequer na rua. De repente, e me senti em uma cidade pequena que parecia estar em um dia de feriado. Foi então que meu celular tocou. Eu estava sem torre. Olhei para a tela, era o despertador das 10h da manhã, me lembrando de tomar um remédio. Eu não estava mais preocupada em chegar atrasada no trabalho ou em encontrar minha bicicleta perdida no meio do temporal, eu só queria achar um jeito de sair dali.

Eis que, de repente, eu vi duas luzes se aproximando. Era um carro, ele fez sinal de luz, reduziu a velocidade e parou. Ele baixou o vidro e perguntou:

– Pra onde a moça está indo?
– Eu trabalho a 5 quadras daqui, o senhor pode me deixar lá?
– Claro, entra aí!

Eu nunca tinha visto uma Variant antiga tão bem conservada. Até o som era original. Reparei porque ele estava com o rádio do carro ligado. Eu pensei alto: “Nossa, há quanto tempo eu não ouço rádio!”. E ele respondeu:

– Logo se vê! Por isso a senhorita foi pega de surpresa pela chuva!

Eu sorri, mas não sem estranhamento. Procurei meu celular dentro da bolsa, e não o encontrei. Devo ter deixado cair no ponto de ônibus… mas àquela atura, o celular não era o mais importante mesmo. O motorista me perguntou:
– Perdeu alguma coisa?
– Perdi… meu celular. Mas deixa pra lá.
– Sigo reto? – ele me questionou, querendo saber o caminho para o meu trabalho.

Olhei para frente e não sabia onde estava. Não reconhecia nada.

– Onde que a gente está? Esta é a Avenida Gramado?
– Não, esta é a Avenida 15.
– Isso, a antiga Avenida 15 é a Avenida Gramado… o senhor deve morar na V ila A há muito tempo, né?
–  Na verdade, cheguei há um ano e meio, assim como a maioria que veio trabalhar na Usina.

Aquela conversa não tinha pé nem cabeça… A maioria das pessoas que veio trabalhar na Usina de Itaipu chegou no início da década de 80, e estávamos em 2019. Achei melhor não dar corda para o assunto e simplesmente pedi que ele me deixasse próximo ao Mercado Líder. Mas quando ele disse que não tinha nenhum Mercado Líder na Vila A, comecei a me preocupar…

Nesse momento, eu ouvi na rádio: “Hoje, 27 de outubro de 1982, as Sete Quedas acabaram de ser completamente inundadas. O Lago de Itaipu está finalmente formado.”

Primeiro achei que fosse uma gravação (ou alguma Pegadinha), mas não tinha nada dentro do toca-fitas do carro. Olhei em volta… e finalmente reconheci o lugar. Não sei como, mas eu estava na Foz de Iguaçu de 1982. Fiquei muito agitada e comecei a passar mal, e creio que acabei desmaiando.

Não sei ao certo, só sei que, quando acordei, estava caída no meio da rua e algumas pessoas em volta tentavam me ajudar, perguntando se eu estava bem. Olhei para cima e vi que o céu nublado estava dando lugar ao sol. Ao lado, vi minha bicicleta, caída no chão. Eu caí porque uma Variant não me deu a preferencial… o motorista veio me pedir desculpas… A Variant não tinha nada a ver com a do meu “sonho” (?), pois estava bem detonada, mas o motorista era o mesmo. Isso mesmo, o mesmo senhor que me tirou do meio da chuva de 1982 que caía para terminar o alagamento do Lago de Itaipu. Era ele, muitos anos mais velho… comecei a rir. Ninguém entendeu nada. Olhei no relógio do celular: eram 9h56. Eu tinha 4 min para não me atrasar para o trabalho, então levantei, sob os protestos das pessoas que estavam ali, e fui empurrando minha bicicleta.

Cheguei ao trabalho, chequei essa informação e constatei que o Lago de Itaipu foi inundado entre os dias 13 e 27 de outubro de 1982, quando as Sete Quedas de Guaíra foram totalmente cobertas.

O ponto de ônibus, de onde eu vi minha bicicleta desaparecer e onde a Variant 1980 parou pra eu entrar, fica exatamente na esquina do lugar onde fui atropelada. Por via das dúvidas, eu mantenho uma boa distância dele todos os dias…

Imagem: AutoMuseum Volkswagen

Sobre o autor

Patrícia Librenz

Mãe de dois gatos, um autista e outro que pensa que é cachorro. Casou com um veterinário, na esperança de um dia terem uns 837 animais. Gaúcha no sotaque, pero no mucho nos costumes. Radicada em Foz do Iguaçu desde 2008, já fez mais de 30 mudanças na vida. Revisora de textos compulsiva, apaixonada por dicionários. A louca do vermelho. A chata que não gosta de cerveja. A esquisita que não assiste a séries. Dona da gargalhada mais escandalosa do Sul do Mundo. Mestra em Literatura Comparada, é fã de Machado e Borges, mas ignorante de Clarice Lispector e intolerante a Paulo Coelho. Não necessariamente nessa ordem.